Música

O precioso legado do maestro Letieres Leite com a Orkestra Rumpilezz

No último álbum, já disponível nas plataformas digitais, o maestro baiano Letieres Leite celebra o mestre, o compositor, o arranjador e o multi-instrumentista pernambucano Moacir Santos

Naum Giló*
postado em 08/06/2022 06:00 / atualizado em 08/06/2022 10:59
Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz reunidos -  (crédito: João Atala)
Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz reunidos - (crédito: João Atala)

O maestro Letieres Leite morreu em outubro do ano passado, aos 61 anos, em decorrência de complicações causadas pela covid-19, mas deixou um álbum gravado junto ao grupo de sopros e percussão Orkestra Rumpilezz. Moacir de Todos os Santos (Rocinante), que já está disponível nas plataformas digitais, traz, em seu repertório, sete dos 10 temas de Coisas (1965), estreia fonográfica do maestro, compositor, arranjador e multi-instrumentista pernambucano Moacir Santos (1926-2006), outra divindade da música brasileira.

"Letieres Leite reuniu em Salvador um grupo seleto e eclético de músicos, uns vinte e poucos, negros, mestiços e brancos — todos eles associados às vertentes mais populares ou mais clássico-eruditas da música que se faz na Bahia", descreve Gilberto Gil, no texto da contracapa do LP, o início da Rumpilezz, fundada pelo maestro em 2006. Caetano Veloso empresta sua voz em Nanã, cantando em inglês, segunda língua de Moacir Santos, que morou por décadas na Califórnia (EUA). O trombone de Raul de Souza (1934-2021) abrilhanta a faixa Coisa nº 4.

"Estávamos gravando o disco O enigma de Lexeu, quando Letieres me contou que havia feito um show com composições do Moacir, os quais ele confessou ter o desejo de gravar. Fizemos o convite e ele aceitou na hora", relembra Sylvio Fraga, da Rocinante. A gravadora, localizada na Região Serrana do Rio de Janeiro, teve que passar por mudanças estruturais para receber todos os músicos da orquestra, que gravou o último álbum sob a batuta do seu fundador, em março de 2019. Microfones adicionais foram alugados para que todos os instrumentos tivessem uma captação em nível máximo, a fim de aperfeiçoar a performance dos 22 músicos (com o maestro incluído).

Sylvio conta que o músico que se aventurasse a ser regido por Letieres Leite era jogado para "dentro do universo de sistema de claves das matrizes africanas". Fraga lembra do maestro falar que a maior parte da música brasileira partia das heranças do continente africano, sobretudo dos ambientes sacros dos terreiros de candomblé. "A pesquisa de Letieres olhava para isso de maneira consciente, de forma científica. Já Moacir tinha esses ritmos incorporados mais naturalmente", compara Fraga. "Importante ressaltar que a música de origem africana é rigorosamente estruturada. Mas ela precisa ser estudada na sua origem. E ela é de tradição oral. Não dá para colocar no papel, que é o modo europeu de estudar."

Letieres Leite chegou a ouvir a versão final do disco antes de fazer a derradeira viagem. Sylvio garante que ele deu o "ok" para o resultado da obra. "Fica difícil de curtir o trabalho, apesar de estarmos felizes. Mas ficou um buraco. Talvez ainda não tenhamos a real dimensão da importância dele. Além da busca artística intensa pela beleza, ele era um pesquisador e apontava para os reais inventores das origens da música brasileira. Isso fazia parte da militância dele antirracista e era algo ouvido na sua obra e no seu discurso como educador."

Percussão na frente

Algumas pessoas que conviveram com Letieres chegaram a ouvir dele que havia ausência de educação rítmica em muitos músicos profissionais por aí. E "a percussão é o início de tudo", segundo as palavras de Tiago Nunes, integrante da orquestra. "Tudo é percussão, tudo tem um som", define o músico. "Aprendi muito com Letieres, todos os dias. Aprendi a me posicionar como percussionista e criador. Não é preciso de partitura para criar. Eu consigo transmitir a ideia do meu pensamento e produzir com o solfejo. Letieres fazia muito isso. Ele sempre defendeu o tambor, botou a percussão na frente e a valorizou, sendo que a percussão já foi considerada a 'cozinha' da música, com cachês geralmente menores que de outros músicos."

Tiago chama a atenção para o fato de o Brasil ser referência internacional de percussão. "O percussionista brasileiro é curioso. Toca a sua cultura e a de outros lugares e Letieres tem tudo a ver com isso", reflete o músico, que, além de Rumpilezz, integra a banda do cantor Bell Marques e trabalhou no álbum Mangueira - a menina dos meus olhos (2019), de Maria Bethânia.

Moacir Santos

Nascido em Serra Talhada (PE), Moacir José dos Santos viveu intensamente no universo da música desde a infância. Migra para o Rio de Janeiro e se torna arranjador da orquestra da Rádio Nacional, em 1951, ao lado de Radamés Gnattali, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli. Após mergulhar nos estudos formais da música erudita, desenvolve intensa atividade docente, tendo entre seus alunos Baden Powell, João Donato, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Nara Leão, Eumir Deodato, Carlos Lyra e Roberto Menescal.

Ao longo da sua trajetória, Moacir aprendeu a dominar diferentes estilos orquestrais, do jazz ao folclorismo sinfônico. Ritmos latinos como rumba, merengue, samba, marcha e o choro também são encontrados em seu vasto repertório musical. Tamanha versatilidade foi reverenciada por Vinícius de Moraes em Samba da bênção: "A bênção, Moacir Santos, tu que não és um só, és tantos".

*Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco

 

 

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