Logo nas primeiras páginas do livro Antonio Obá, a reprodução de uma pintura apresenta oito meninos negros, vestidos com roupas íntimas luxuosas como as usadas pelas mulheres que costumavam ser servidas por escravizados. Os meninos dançam, seus pés brilham e, ao centro, flores celebram a alegria expressa na pintura. Na página seguinte, três meninos, também negros, nadam em uma piscina muito verde enquanto um jacaré os ameaça, uma lembrança de que, há algum tempo, não era permitido a tais crianças usufruir do lazer em piscinas translúcidas. Antonio Obá pintou Dança dos meninos em 2021 e Banhistas nº 3 — Espreita, em 2020. São trabalhos recentes e perfeitos para entender a história contada no livro lançado pela Cobogó em uma edição extremamente caprichada.
A edição começou a ser pensada antes da pandemia e a ideia era reunir um bom apanhado da produção do artista. Há obras desde 2015 e textos assinados pelas curadoras Diana Campbell e Diane Lima. "Não tem toda a produção, mas tem etapas que foram muito significativas nesse processo de construção artística", avisa Obá. "A gente pensou um recorte conceitual no conjunto que foi se desenhando."
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Na parte final do livro, o artista permitiu um mergulho mais íntimo em tempos pregressos com escritos e desenhos pescados em diários visuais mantidos desde o ensino médio. "Tudo ali é material fundante, que de certa maneira reconstrói uma perspectiva acerca do trabalho que vai se apresentando hoje em dia", diz Obá, que acha interessante ver, tanto no recorte quanto no texto construído pelas autoras, como a própria obra se desenha sob a perspectiva do olhar do outro. "Cria uma dinâmica muito prolífica em significados", garante o artista brasiliense, nascido em Ceilândia, morador de Taguatinga e um dos nomes contemporâneos de maior destaque na arte brasileira nos últimos anos.
Finalista do Prêmio Pipa em 2017 e ganhador do Transborda um ano antes, celebrado por feiras como a SP Arte e a Art Basel, onde ganhou estandes exclusivos, e presente em coleções importantes, Antonio Obá traz para a pintura brasileira contemporânea o que chama de "uma averiguação, um certo revisionismo histórico no sentido de um entendimento, ainda que breve, de uma identidade pessoal, nacional, humana". A investigação íntima do artista tem a ver com memórias e história, com a potência simbólica das figuras pretas pintadas em narrativas que investem na inversão de perspectivas sem abandonar a dimensão da realidade.
As pinturas que abrem o livro são bem representativas dessa ideia. "O trabalho tem o caráter de uma investigação íntima que tem a ver com memórias, mas com necessidade grande de transformar essa intimidade em potência simbólica que faça parte de cada um", ressalta o artista. "Por isso essa pretensão de tentar criar algo que, a partir de uma perspectiva íntima, possa fazer sentido para outras pessoas. Por isso meu trabalho tem grande carga simbólica e a ideia de arquétipos. Tem um caráter de reflexão e discussão étnica, mas tentando abrir o leque para a dimensão de uma experiência humana."
Se boa parte da arte brasileira colocou o negro em posição de humilhação, especialmente em obras produzidas nos séculos 17 e 18, Obá propõe um revisionismo capaz de criar outra camada de leitura. "Como se fosse uma correção histórica, de voltar os olhos para trás, não para tratar isso com uma comiseração, mas no sentido de pegar esse passado e reeditar o dito", avisa. "Tem a ver com uma construção simbólica que propõe outra via de interpretação. Parto de imagens de arquivo que têm a ver com uma história de preconceito étnico e como isso, em determinado momento, foi construído no sentido de desprivilegiar e desumanizar uma etnia", explica.
Essa proposta salta aos olhos em muitas pinturas, mas uma em especial, Wade in the water II, emociona. Uma homenagem ao norte-americano George Floyd, morto asfixiado por um policial, o óleo sobre tela traz um mar de azul impactante que se abre para a passagem de um homem vestido de branco.
Essa revisão proposta pelo artista, cujo sobrenome Obá, orixá de um rei na tradição iorubá e uma rainha guerreira no candomblé, foi adotado em 2013 como forma de celebração da própria identidade, encontrou eco na cena artística nacional e internacional. Foi de Antonio Obá a obra escolhida para figurar no centro da exposição de abertura da Pinault Collection na Bourse de Commerce de Paris, nova sede da coleção do milionário François Pinault. Há obras do brasiliense no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) e do Rio de Janeiro (MAM/RJ), no Museu de Arte do Rio (MAR), na Pinacoteca do Estado de São Paulo, além de acervos internacionais como Pinault Collection, Pérez Art Museum Miami e ICA Miami. Em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, a individual Revoada é uma boa oportunidade de conferir os trabalhos mais recentes, alguns dos quais estiveram em exposição em Nova York, tema de reportagem no Fantástico em dezembro de 2022.
Aos 39 anos, o pintor egresso de escola da rede pública do DF e da Faculdade Dulcina de Morais acredita que o mundo está mais preparado para receber trabalhos que trazem um questionamento como o proposto por ele. "Percebo que existe uma necessidade de repensar essa simbólica toda. Isso não vem por acaso e não é só na arte. Vem de um processo educativo, uma educação estética de fato", avalia. "E, de certa maneira, os trabalhos acabam cumprindo isso, são muito narrativos. Além de ser uma obra figurativa, que chama a atenção, tem esse caráter de uma construção narrativa e parece que existe uma necessidade grande das pessoas de ouvir histórias."
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