Cinema

Cinema brasiliense é destaque em festivais e em premiações

Com ampla escalada na ocupação de espaço em festivais das mais variadas regiões, cineastas e artistas da cidade comentam, ao Correio, suas metas e inspirações

Destaque em prêmios, espírito de colaboração e pluralidade — essa é a tônica do cenário do atual cinema brasiliense. "Não é mais possível afirmar que existe um só cinema brasiliense, há vários. E isso é excepcional", avalia o diretor Gustavo Galvão (confira entrevista), que emplacou os longas O vazio de domingo à tarde e Inventário das imagens perdidas na seleção da Mostra Internacional de São Paulo. "São filmes que se completam, ao tratarem de idêntica matéria-prima: a imagem como construção de mundos paralelos ao real e que, ao mesmo tempo, traduzem o real", comenta.

Ângulos novos e reflexões sobre Brasília nutrem o drama O vazio de domingo à tarde. "O projeto, com relevância da ótica feminina, aborda a imagem que nosso meio, o do audiovisual, constrói da mulher. Daí termos mulheres criativas e com poder de decisão em todo o processo (há a coprodutora e corroteirista Cristiane Oliveira e a produtora executiva Daniela Marinho, e ainda as atrizes Gisele Frade e Ana Eliza Chaves)", aponta Galvão. Também com duas mulheres em papéis centrais, Inventário das imagens perdidas mostra um futuro povoado por revolução fundamentalista e por imagens e memórias de um velho cineasta, esquecido como o próprio cinema.

Um episódio que envolveu jovens estudantes, em 1968 num conflito direto com forças da ditadura move a trama do recém-premiado longa A batalha da Rua Maria Antônia, que levou o troféu Redentor no Festival do Rio. No longa assinado por Vera Egito, um dos destaques é da atriz brasiliense Pâmela Germano, 24 anos. "É a minha primeira protagonista. O filme traz um espelho agudo do que vivemos, desde o golpe de 2018: um pesadelo estendido até o janeiro de 2023", diz a estudante da UnB criada em Vicente Pires que hoje se divide entre a Octogonal e as idas a São Paulo.

Atuando desde os 7 anos, aos 17 Pâmela já estava nas artes cênicas. Depois do curta local O mistério da carne, que teve ampla passagem em festivais internacionais, Pâmela, que pode ser vista na série da Star Dois tempos, se viu num circuito que incluiu Espanha, Hong Kong e Uruguai, para a exibição de As miçangas (dos brasilienses Emanuel Lavor e Rafaela Camelo). O filme chegou até ao Festival de Berlim.

"Teve gente da equipe que vendeu o carro para estar lá (risos). Gosto do cinema independente que é muito íntimo do cerrado. É um privilégio estar em filmes de pessoas nas quais acredito muito, e em roteiros com valores e complexidades. Inscrevemos para editais, e o filme gira no mundo. Fazer teatro e cinema politiza. Gosto de processos de grupo e pesquisas. A arte detém este lugar específico de transformação", conclui. No mesmo Festival do Rio, o longa de outra mulher, Carolina Markowicz, rendeu outro prêmio de melhor atriz para a brasiliense Maeve Jinkings (leia entrevista), à frente de Pedágio. No filme, que trata da pretensão em torno da chamada cura gay, há evidente associação com discussões que tramitam nos corredores políticos de Brasília.

Em todos os lugares

"Eu não filmo só em Brasília, mas sou muito influenciado por ela. Acho que é muito interessante que a produção local circule porque o olhar de quem cresce em Brasília acopla a singularidade da arquitetura que fornece uma fonte de muita originalidade", avalia o experiente José Eduardo Belmonte, com 15 longas na carreira, sendo o mais recente, Uma família feliz, integrante da Mostra de SP. Na opinião de Belmonte, há uma forma muito específica mesmo para cineasta com filmes muito distintos, como no caso de René Sampaio e Adirley Queirós. "As pessoas começam a entender a cidade, que é muito nova, e paradigmas que as pessoas ainda não entendem por completo. Há olhares sobre e de Brasília, nisso é muito interessante os filmes circularem, nacionalmente e internacionalmente", avalia.

Uma estrada de reconhecimento para o curta local Vão das almas (codirigido por Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape) vem por prêmios: acumulou o de melhor filme e direção no Festival de Triunfo; melhor curta (ficção) no Festival de Trancoso e ainda melhor direção no Griot — Festival de Cinema Negro Contemporâneo (Curitiba). O curta, situado no Quilombo Kalunga (Chapada dos Veadeiros), estreou há dois meses no Kinoforum (SP), como seleção para 20 festivais nacionais e 11 no exterior. "A exibição mais recente foi no Festival do Rio, e certamente foi o maior público que o filme teve até aqui, com a sala do Cine Odeon cheia e a do Espaço Net Gávea 5 lotada. Mas também tem havido uma boa acolhida fora do Brasil, no circuito de cinema de gênero, e o filme já passou na Austrália (A Night of Horror), Uruguai (Montevideo Fantástico) e Estados Unidos (HorrOrigins), e ainda vai passar na Nigéria (Africa Horror), País de Gales (Abertoir) e no México (Mórbido Fest) — os dois últimos integrantes da principal federação dedicada ao cinema fantástico no mundo, a Meliès International", celebra Dellape. Atualmente, a dupla trabalha para ampliar o circuito, objetivando a Ásia, a Região Norte do Brasil e, claro, Brasília.

Três perguntas //Maeve Jinkings, atriz

 

Suellen foi gestada a partir de que propósitos e olhares?

Meu propósito como atriz é sempre trazer humanidade para a personagem, que naturalmente serve ao propósito do roteiro de contar uma história específica. No caso de Suellen, me parecia importante compreender sua dor, sua solidão na criação de Tiquinho, seu cotidiano duro de mulher trabalhadora e mãe solo. Compreendi o quanto ela, como tantas mães, trazia o afeto da vergonha social, que se dá muito na culpabilização da mãe. Ela não é homofóbica por ideologia, mas por pressão social.

Vê como retrocesso o projeto de lei que tenta afugentar a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo?

Não vejo como retrocesso. Simplesmente é um retrocesso, além de ser inconstitucional. As pessoas que tentam recriar essa lei são ignorantes, preconceituosas e atrasadas. Essa w da lei tenta estabelecer uma categoria subalterna de direitos adquiridos. Uma aberração.

Qual a cota de Brasília na formação de alguém que ganha prêmio tão importante?

Brasília é meu berço. É parte fundamental de quem eu sou.

 

Entrevista // Gustavo Galvão, cineasta

Como viu a chegada dupla de filmes num mesmo festival, e há intenção de estar no Festival de Brasília?

Os dois filmes ganharam forma quase ao mesmo tempo. Consegui me manter ativo apesar das
adversidades dos últimos cinco anos. Inventário de imagens perdidas, nasceu exatamente como reação a essas adversidades. Com certeza eu tenho a intenção de apresentar ambos ao Festival de Brasília. Pena que o nosso festival vive um momento tão delicado, estamos na segunda quinzena de outubro e ainda não abriram a seleção. Isso é preocupante para o futuro do cinema de Brasília. Se o festival sair do papel, serei dos primeiros a inscrever meus filmes.

Há relevância do cinema local no painel brasileiro?

O DF tem sua importância no cinema nacional contemporâneo, são muitos os nomes do DF que ganharam as telas do Brasil e do mundo. Pena que nem sempre esses talentos encontram o devido estímulo “em casa”. O cinema brasiliense está bastante machucado, já são dois anos sem um edital do FAC para audiovisual e agora não sabemos quando teremos o festival. Impressiona a resiliência dos que fazem cinema independente no DF.

Brasília é celeiro do audiovisual?

Pontuei 90% da equipe de O Vazio de domingo à tarde com brasilienses, inclusive alguns cabeças de equipe e uma das protagonistas, Ana Eliza Chaves. No caso do Inventário de Imagens Perdidas, em que a equipe como um todo é reduzida e que foi rodado no interior do RS, há três talentos brasilienses: a atriz Larissa Mauro, o compositor Munha da 7 (colaborador em Ainda temos a imensidão da noite) e Marcius Barbieri (montador de meus filmes anteriores). Onde quer que eu vá, tento ao máximo levar talentos brasilienses comigo.

Qual a singularidade dos artistas e das visões candangas?

Até meados dos anos 2010, eu costumava valorizar a noção espacial privilegiada dos artistas do DF, é uma questão de amplitude de visão mesmo — seja em termos geográficos e arquitetônicos concretos ou em termos sociais, vide os longas de Adirley Queirós. Acredito que agora podemos destacar também a pluralidade de visões.

Em que a cidade contribui para teu olhar?

Brasília me ensinou a buscar os detalhes na sua monumentalidade, que por vezes é opressora e excludente, por vezes é sedutora e convidativa. É uma cidade que não cansa de me atiçar e que eu não canso de filmar. Ela me estimula na mesma medida que me inspira a exercitar meu olhar em outras paisagens, como São Paulo (Nove crônicas para um coração aos berros), as estradas de Minas Gerais e Goiás (Uma dose violenta de qualquer coisa), o interior do RS (Inventário) e a distante Berlim (Ainda temos a imensidão da noite).

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