
Como muitos associam: cinema e sonho andam lado a lado; e nisso, abastecendo o imaginário do público e mesclando essas duas fontes, nenhum outro cineasta contemporâneo teve a grandeza de David Lynch, morto, ontem, em 78 anos. Além de quebrar a indisposição da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, à frente de obras radicais como Veludo azul (1986) e Cidade dos sonhos (filme de 2001 que lhe rendeu o prêmio de direção no Festival de Cannes), ele foi visto como precursor das séries televisivas. Em 1990, se aplicou na realização de Twin Peaks, produto com impacto estrondoso na cultura norte-americana. Tamanha foi a influência e a liderança nas artes, que Lynch seguiu em curtas e fitas experimentais, mesmo depois da absoluta consagração. No ano passado, o cineasta tornou públicos os reflexos do enfisema que obstruía a respiração, depois de décadas na condição de fumante inveterado. A morte foi anunciada via Facebook, por familiares, que registraram: "Existe uma enorme lacuna no mundo, agora que ele (Lynch) não está mais conosco". Engajado na meditação transcendental, Lynch levou a prática até os últimos dias de vida.
Casado por quatro vezes, o diretor deixou quatro filhos, entre os quais Jennifer Lynch, cineasta famosa por Encaixotando Helena (1993). Em frente às telas, David despontou em papéis como o do gênio John Ford (no longa de Steven Spielberg Os Fablemans). Frentes surrealistas, com traços de horror e a coloração noir dos filmes policiais abasteceram a criatividade do diretor, que teve em Laura Dern (e na mãe dela, a atriz Diane Ladd) uma das grandes musas. Animações e a dedicação à pintura enriqueceram o universo artístico da perturbadora mente de Lynch. O clima de sondagem e de inquietação proposto pelo artista foi glorificado em Twin Peaks, revolucionária série coescrita por Mark Frost. Os desdobramentos da morte da estudante, na trama, redefiniram convenções das narrativas da tevê moderna. Além do longa (prévio ao enredo da série) Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer (1992), o plot derivou para série da Showtime, 25 anos depois. A série original se viu esvaziada, mesmo depois de 14 indicações ao importante prêmio televisivo Emmy.
Influente, em 2007, Lynch foi saudado pela carreira no Independent Spirit Awards e venceu Leão de Ouro especial, por todas as obras, no Festival de Veneza de 2006. Um papel, em Lucky (2017), dentro da galeria de personagens que topam com um nonagenário ateu abre brecha para o próprio passado de Lynch, dono de crenças alternativas. Devoto, desde os anos de 1970, da meditação transcendental, Lynch — que sempre encorajou a intuição como ferramenta de compreensão dos filmes — encabeçou a Fundação para a Educação Baseada na Consciência e Paz Mundial (numa tradução livre).
Para além do estímulo à prática da técnica oriental, a instituição com bases em Nova York, Fairfield e Los Angeles, se dedica ao apoio junto a veteranos de guerra, refugiados africanos e pessoas em situação de rua. Uma rede de beneficiados está integrada em 350 instituições. Entre artistas colaboradores para alavancar fundos (por meio de shows) estão Paul McCartney, Ringo Starr e Donovan. Discípulo de Maharishi Mahesh Yogi, o guru indiano morto em 2008, o cineasta batizou uma escola (sob a chancela do mestre), com a David Lynch Graduate School of Cinematic Arts at Maharishi University. Compulsivo bebedor de café, ele colocou o nome numa linha do produto.
Por quatro ocasiões, Lynch obteve indicações ao Oscar, vencido, finalmente, pelo conjunto da obra em 2019. O ar de mistério já veio evidenciado desde os fins dos anos de 1970, quando enveredou para um tipo de cinema singular com o longa Eraserhead. A convite, o impulso para o segmento comercial veio com a direção de O homem elefante (1980), candidato a oito prêmios Oscar e estrelado por Anthony Hopkins e John Hurt. O longa relatava o absurdo bullying social sofrido por Joseph Merrick, visto até mesmo em circos de aberrações. Todas as apostas do virtual sucesso não se confirmaram com o retumbante fiasco provocado por Duna (1984), adaptação do clássico literário de Frank Herbert produzida ao longo de três anos.
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Dois anos depois, Lynch poria em pé um divisor de águas na carreira, com Veludo azul, estrelado por Laura Dern, Kyle MacLachlan, Isabella Rossellini e Dennis Hopper (indicado ao Oscar de coadjuvante). O suspense levanta o tapete que resguardava as sujeiras de uma pacata cidade interiorana. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, Coração selvagem (1990) exaltava a violência e revelava um amor torto, pelas estradas norte-americanas, dos personagens de Laura Dern e Nicolas Cage. Quem azeitava o ar de transtorno era o personagem de Willem Dafoe. Absolutamente precário nas imagens, Império dos sonhos (2006), que foi selecionado para o Festival de Veneza, trazia Jeremy Irons, Laura Dern e Harry Dean Stanton numa trama disposta em vídeo, e cujo autor resumia a (ampla) sinopse: "Uma mulher está em perigo". Foram três horas de projeção.
Facetas
Divertido e provocador, foi na base do deboche que Lynch narrou sistematicamente eventos climáticos, em programa jocoso de uma estação de rádio de rock; além disso, assinou a tirinha o Mais raivoso cão do Mundo que circulou por publicações alternativas. O desacordo com a lógica e a vocação para o entendimento pleno driblaram a objetividade pretendida numa série de entrevistas, até 1996, sistematizadas no livro de Chris Rodley Lynch on Lynch.
Foi com o colaborador Barry Gifford (do livro Coração selvagem) que Lynch escreveu o roteiro de Estrada perdida (1997), um compêndio de atos violentos narrados com requinte que foi bem aceito até mesmo entre os críticos da revista Cahiers du cinéma, como a terceira escolha entre os 10 mais influentes filmes de 1997.
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Retratos de perturbações mentais decalcadas em filmes, a súbita aparição de uma orelha em um descampado, masoquismo, redes de prostituição e drogas foram alguns dos elementos aglutinados em filmes. Foi da Filadélfia — saído para a Academia de Belas Artes da Pensilvânia (cursada em meados dos anos de 1960) — que Lynch ganhou o mundo do cinema ao seguir, em 1971, para Los Angeles, na qual frequentou o Conservatório de Estudos Avançados de Cinema do famoso American Film Institute.
Longe do convencional, o filho de um pesquisador do Departamento de Agricultura dos EUA declarava a extrema admiração por Franz Kafka, um desafio (nunca concluído) para ser adaptado para o cinema. Inclassificável, mesmo para quem o sabia surreal, Lynch não cansava de surpreender: foi com o simplório (mas profundamente emotivo) Uma história real (em 1999, presente no Festival de Cannes) que o norte-americano seguiu arrebatando a plateia. Na trama, em cima de um cortador de grama industrial, um fazendeiro (papel do indicado ao Oscar Richard Farnsworth, que em 2000, cedeu ao suicídio pelo progresso de um câncer agressivo) sai do Iowa, e atravessa o país, de forma rudimentar, para estabelecer pazes com um adoecido irmão. Um Lynch, sempre à prova de rótulos.