Cinema

Documentário conta a trajetória de Luiz Melodia, um compositor à margem da indústria

Documentário dirigido por Alessandra Dorgan reconstitui a trajetória fulgurante e acidentada do cantor e compositor Luiz Melodia

Cena de Luiz Melodia: No coração do Brasil, com Elza Soares -  (crédito: Luiz Melodia: No coração do Brasil (embaúba filmes))
Cena de Luiz Melodia: No coração do Brasil, com Elza Soares - (crédito: Luiz Melodia: No coração do Brasil (embaúba filmes))

Como cria de morro, atiçado para a música e o futebol, o futuro cantor e compositor Luís Carlos dos Santos, reconhecido como Luiz Melodia, nos idos dos anos de 1970, alardeia a "infância fantástica", no bairro do Estácio (tornado "hino", quando criou a eterna Estácio, holly Estácio). Ainda criança, como relatado no documentário Luiz Melodia — No coração do Brasil (de Alessandra Dorgan), ele se divertia, antes das garantidas "coças da mãe", pelas perigosas caronas de bonde do cotidiano. Indócil, na esperteza "do gingado e olhar", com pouco mais de 20 anos, Melodia recebeu de transferência do pai (o compositor seu Osvaldo), o que "estava no sangue", advindo das músicas de um Rio antigo.

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A "mágica" oportunidade que contemplou com uma "canetada" sua poesia veio do fato de "acontecer", depois de uma ponte de Wally Salomão junto a Gal Costa (que gravou Pérola negra), num trampolim de velocidade acelerada do qual ainda participou Maria Bethânia entoando o tal hino que Melodia, pela vida, celebrou. Para um grande público, ainda gravou clássicos, décadas antes de, em 2015, ganhar troféu (de cantor popular) no Prêmio Música Popular Brasileira: Codinome beija-flor (que em 1991, integrou trilha da novela O dono do mundo) e, incluída no LP de Pecado Capital, a estrondosa Juventude transviada. Quem esquece?! "Lava roupa todo dia, que agonia...". O sucesso no Festival Abertura, com Ébano (1975) ganha registro.

"Tivemos a revelação de um filme em Super-8, inédito, da cinegrafista amadora Márcia Lancellotti. Vimos que era uma joia. Tem outro material do Melodia caminhando, na Bahia, em Itaparica e em Salvador, quando ele se refugiou do sucesso do Juventude transviada, tocando violão, compondo para o próximo projeto, com a esposa Jane, em lua de mel. Há ainda o registro do show da Gal (Gal FA-TAL), filmado pelo Leon Hirszman. Há tanta coisa valiosa que enxergo: o Melodia dedilhando Pérola negra, com cabelão rastafari, lindo, em imagens da TV Cultura. Conseguimos fazer um garimpo muito precioso de momentos de performances e boas entrevistas dele", observa a diretora Alessandra Dorgan.

Morto em 2017, em decorrência de câncer, Melodia conta, no filme, da escalada fulminante do sucesso, depois de inflar o seleto grupo de amigos como Torquato Neto, (o mestre) Itamar Assumpção e do irreverente Jards Macalé ("ele me incentivou, na maneira de compor, dada a variedade sonora, a cada disco (...)", — "aquela pessoa, magra e barbuda, da Tropicália"). Sérgio Sampaio — "que mais estava comigo (como ele diz)" — foi dos que o saudou com poesia, na composição de Doce Melodia.

O filme de Alessandra ainda acompanha mais da vitalidade do "cabrito" que subia e descia o morro, e muitas vezes se rebelou contra a excessiva cobrança por sambas. "Nunca persegui o sucesso", diz Melodia, que, assediado em excesso, buscou a brandura do "simples" e os privilégios de frequentador de botequim. Se canta parte da áspera Esse filme eu já vi, no cinema, Melodia surge em cena terna com um abraço na personagem de Fernanda Montenegro, no longa Casa de areia. Na seara do cinema, Zezé Motta é outra que desponta em cena do documentário. Elza Soares, parceira, entoando Fadas, coroa uma fase glorificada por Melodia, ao lado dos músicos Renato Piau e Perinho Santana. Entre malabarismos (presentes no disco Mico de circo), com direito a divulgação alegremente marginal, entre batidas jazzísticas e charme de maldito, Melodia profetiza o amor, ao lado de Jane, "o pão e vinho de cada dia". Para a satisfação dele e do público, o artista, daqueles capricornianos teimosos e convictos, se gaba de nunca ter descaracterizado suas atitudes. "Você tem que ser corajoso, audacioso", conclama.

Entrevista // Alessandra Dorgan, cineasta  

Como Melodia persiste nos dias de hoje?

A resistência do Melodia é atemporal. Hoje em dia, os véus caíram, e ainda bem. Tudo está mais explícito. Fizemos, mesmo tardiamente, nossa lição de casa de, como sociedade, enxergar os nossos erros do passado e observar a crueldade do racismo estrutural. Isso, sem passar pano. A resistência dele segue inspirando pessoas, assim como inspirou na época dele. Ele foi um artista com um público gigante até o fim da vida. Isso ressoa forte para o filme, por ver que esse grande público estava saudoso e necessitando de um reencontro. Melodia pode inspirar essas novas gerações por nunca ter sido panfletário. O filme e ele são sutis: ele conta a sua própria história, em primeira pessoa, com as injustiça sociais, as desigualdades.

Foi desafiante o fato de Melodia se afirmar como alma livre?

Toda alma livre incomoda, mas eu acho que não é esta a questão central do desafio do Melodia. A persistência e a integridade consigo mesmo dos que não se dobram a um sistema que quer te esmagar é o que incomoda. Ele tem traços típicos das suas convicções. Ele acredita ser possível viver da sua própria arte. E isso, apesar de toda essa máquina que esmaga e que mói os artistas daquela época, que era um sistema, e dependia da grande imprensa e das gravadoras... Hoje, o artista se encontra atado a esse sistema em que a gente se colocou em relação às redes sociais. Em que o artista precisa ser uma celebridade para mostrar seu valor. A gente está sempre condicionado. Incomoda quando a gente não quer participar de um status quo operante. E, sem fazer parte do jogo, deixar um legado riquíssimo?!

Como Melodia lidou com o rap?

Acho que como um poeta coloquial que falava sobre o retrato do nosso país, sobre as dores do nosso país, ele pode ter influenciado muito o rap e o hip-hop que chegaram nas gerações futuras. Inclusive o filho dele, o Mahal, é um MC do rap. Acho que nessa nessa brincadeira, há grande chances de o Luiz ter influenciado muito essa nova geração do hip-hop, a partir dos anos 1980 e 1990, e foi fortalecida nos últimos 20 anos.

Qual o teu papel junto ao cinebiografado?

Sentindo toda aquela aquela emoção da estreia e o público recebendo tão bem o filme em festivais, sinto que sou também uma criatura de Luiz Melodia. É claro que quando a gente faz um filme, a gente imprime ali também o nosso ponto de vista. É muito do que a gente está enxergando por trás daquela cortina, das camadas e daquele personagem movido a escolhas. Muito diz do que eu queria contar dele, e enxergo que de alguma forma é o Luiz que está se contando. Ele dita o ritmo do filme, muitas muitas vezes, a montagem. Nisso, digo que, de certa forma, fui uma criatura também de Luiz Melodia.

Qual a extensão do material saído do baú musical? 

Olha, o Joaquim Castro (corroteirista e montador) e eu usamos as duas primeiras semanas inteiras, trabalhando até 10 horas, por dia, só assistindo ao material, catalogando coisas e enxergando as temáticas que eram importantes para o Luiz. As origens das imagens foram das mais diversas. Temos, desde gravação de fita MIDI (só áudio), Super-8, 16mm e 35mm já digitalizados. Tem fita Beta, Mini-DV e muitas fitas VHS da Jane Reis, esposa do Melodia, além de DVDs antigos. Tivemos todas as bitolas (de captação de imagem), nessa colcha de retalhos super rica que foi colocada dentro da ilha de edição.

O que torna o Melodia "o peregrino sábio dos enganos"?

Poderia ser uma pergunta feita para ele... Acho que talvez o que ele queira dizer ali (na música Ébano), nessa peregrinação, nesses deslocamentos, geográfico e social, com os quais foi muito bem-sucedido, houve muitas vezes caminhos tortos. Com distanciamento e, apesar de todas as dores e desafios, houve resistência, e ele passou.

Ser maldito revelou esperteza do artista?

Olha: eu não sei se foi esperteza assumir (pecha de) maldito. Acho que, como ele mesmo diz, quando surge essa primeira tentativa de tachá-lo de maldito, ele mesmo diz que, numa sociedade como a nossa, você pode estar à margem de um sistema que não funciona, de um sistema opressor, de um sistema que esmaga o artista independente. Inicialmente, ele achou graça, né? Depois, essa insistência, esse encaixotamento, este silenciamento dele e da obra dele, de um modo, o limitou. Mas ele não ele se limitou. Acho que o sistema do mercado fonográfico, o sistema da grande mídia, da imprensa, daquela época, o limitou.

 


  •  Luiz Melodia com a grande admiradora Gal Costa
    Luiz Melodia com a grande admiradora Gal Costa Foto: Embaúba Filmes.
  •  A cineasta Alessandra Dorgan
    A cineasta Alessandra Dorgan Foto: Alisson Louback
Ricardo Daehn
postado em 23/01/2025 01:10
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