Literatura

Quando a guerra chegou ao Rio: o impacto da Segunda Guerra no Brasil

Novo livro de Ruy Castro investiga as repercussões da Segunda Guerra Mundial na sociedade brasileira e, especialmente, no cotidiano da então capital da República

Ruy Castro -  (crédito: Heloisa Seixas)
Ruy Castro - (crédito: Heloisa Seixas)

Ruy Castro ficou surpreso quando se deu conta do quanto o impacto da Segunda Guerra no cotidiano brasileiro foi pouco estudado. Mas achou bom. Era uma boa justificativa para escrever sobre o tema. Foram seis anos de pesquisa para dar forma a Trincheira tropical — A Segunda Guerra Mundial no Rio, que a Companhia das Letras acaba de lançar. 

Pouco mais de 7 mil quilômetros separam o Brasil da Europa e o território brasileiro sempre foi poupado de bombardeios e batalhas de trincheiras, mas o horror que assombrava a Europa teve enorme repercussão na então capital do país. O Rio de Janeiro, sob o comando de Getúlio Vargas, então presidente, viveu parte da desintegração social provocada pela guerra. 

A cidade pode não ter sido destruída por bombas e balas, mas bunkers foram construídos, treinamentos foram feitos com sirenes para o caso de ataques — e, nesse caso, até cigarros eram apagados para evitar qualquer pista que ajudasse os inimigos —, o carnaval perigou não acontecer (aglomeração era alvo fácil), marchinhas que ridicularizavam Hitler, Hirohito e Mussolini, os ditadores do Eixo, foram compostas, e até filmes de Walt Disney e Orson Welles foram feitos para evitar uma aproximação com a Alemanha nazista.

O Brasil, durante certo tempo, antes de Getúlio decidir-se pelos Aliados e o cenário da guerra virar, foi visto pelo Terceiro Reich como uma possível extensão do "espaço vital", o Lebensraum que alimentaria a grande nação alemã. Seria um reich erguido por imigrantes e alemães nascidos nos trópicos, que, para Hitler, eram alemães devido ao sangue e nunca brasileiros, um exército em potencial capaz de promover um levante latino, perspectiva que incomodou as autoridades. 

É com a história do integralismo, movimento fascista, conservador e de extrema-direita que pretendia tomar o poder — ou ao menos governar de braços dados com Getúlio — que Castro começa o livro. São os anos anteriores à guerra, mas fundamentais para compreender o desenrolar da história e o comportamento joanino de Getúlio que, durante algum tempo, ficou em cima do muro e não abraçou nem o Eixo nem os Aliados. 

Detalhes do cortejo americano para convencer o presidente a não desbancar para o lado de HItler, desmonte de células de espionagem alemãs e seus radiotransmissores que infestavam o Rio, pontos importantes de triangulação de informações entre espiões nazistas lotados nos Estados Unidos e seus chefes na Europa, Castro conta histórias espetaculares e mergulha numa cidade inteiramente voltada para o rumo dos combates do outro lado do Atlântico. Das intrigas palacianas à cena cultural, Trincheira tropical esmiúça o cotidiano carioca em uma época sobre a qual pouco se escreveu. Em entrevista, Ruy Castro fala sobre o livro e alguns dos temas abordados no trabalho de 414 páginas. 

Entrevista // Ruy Castro

Como nasceu a ideia do livro, em que momento você percebeu que a Segunda Guerra no Brasil, um país que nunca entrou efetivamente nesta guerra, rendia um livro? Essa era uma história esquecida ou subestimada?

Sempre soube que nenhum país do mundo fica completamente alheio a uma guerra mundial. Principalmente porque essa é sempre travada pelas grandes potências e, de uma maneira ou de outra, sempre fomos dependentes delas. Além disso, o Brasil era estrategicamente importante tanto para a Alemanha quanto para os Estados Unidos, em matéria de grãos e matéria-prima e localização geográfica. Nada disso era segredo. A novidade do meu livro está no fato de os estudiosos nunca terem atentado para o fato e de que o centro dessa história no Brasil era o Rio.   

O título do livro remete à resistência, à luta cultural. Em que medida escrever essas histórias é também uma forma de combate?

Indiretamente acabou sendo, porque foi a entrada do Brasil na guerra que possibilitou a queda da ditadura do Estado Novo. E é impressionante como a descrição que faço dos integralistas lembra a ação dos bolsonaristas. 

 Podemos dizer que o livro faz um resgate de personagens que ficaram de lado ao longo do tempo? Penso aqui em figuras como o Miranda, do Partido Comunista, Lourival Fontes, do DIP,  Mascarenha de Morais, comandante da FEB, e até Miguel Reale. O que te atraiu nesses personagens? Ao pesquisar, você sentiu que algum deles merecia um livro próprio?

Muitos protagonistas daquela história passaram à posteridade com o sinal trocado, como vários militantes do nazismo brasileiro que se converteram à democracia. Não quis atacar particularmente ninguém, mas a história precisa de que seus atores sejam responsáveis pelos papéis que desempenharam em qualquer época. E, sim, muitos merecem livros próprios. Torço para que os historiadores os façam.  

Entre as histórias selecionadas para o livro, houve alguma que deu mais trabalho de ser apurada e pesquisada, que consumiu mais tempo e mais recursos? E houve muitas que ficaram de fora?

Não, nada de importante ficou de fora — por que ficaria? E toda a apuração do que se passou no Rio foi difícil, tanto que me levou seis anos. 

Qual a história que mais te surpreendeu durante a pesquisa? Houve alguma que tenha mudado a sua perceção sobre certo período ou personagem?

O que mais me surpreendeu foi o grau de importância da guerra no dia a dia do carioca e ninguém, até então, ter escrito sobre isso. Que bom, deixaram para mim... 

O integralismo é um capítulo da nossa história que merecia mais atenção? Ou ele foi bem documentado? E de que maneira ele pode ajudar a compreender o Brasil contemporâneo?

O integralismo já foi bastante estudado. Tive de me esforçar para oferecer dados novos. E, como eu disse, ele está entre nós, na pregação da extrema-direita. 

Das histórias narradas em Trincheira tropical, alguma você destacaria para nos ajudar a entender o Brasil de hoje? Que ecos encontramos desses episódios no Brasil contemporâneo?

O livro mostra que, quando foi preciso, o povo brasileiro saiu às ruas em busca de seus direitos. É o que nunca devíamos deixar de fazer. 

Passamos batido pela história da Segunda Guerra no Brasil ou apenas não a estudamos e registramos direito?

Não apenas a Segunda Guerra, mas toda a história moderna do Brasil é pessimamente estudada. Não sei de quem é a culpa.  

Como equilibrar o rigor histórico e memorialístico do livro com o tom de leveza que você imprime?

O fato de tentar ser rigoroso e exato não impede um autor de escrever com clareza e objetividade. A verdade não pode ser um fardo para o leitor. 

Quais trincheiras estão no seu horizonte para serem exploradas em novo livro?

Já tenho um novo assunto em mente para daqui a três anos. Só posso dizer que, como todos os meus outros livros, se passará no Rio, só que em outra época.

 

  • Convocados pelo governo, os estudantes lotavam o Estádio São Januário para louvar Getúlio
    Convocados pelo governo, os estudantes lotavam o Estádio São Januário para louvar Getúlio Foto: Divulgação
  • Morte nas águas do Atlântico Sul - Não foram apenas os navios brasileiros. Mercantes ou de guerra, 548 navios e submarinos de dezessete países, incluindo Alemanha, foram afundados entre Brasil e África durante  Segunda Guerra. Imagem de Trincheira tropical, livro de Ruy Castro
    Morte nas águas do Atlântico Sul - Não foram apenas os navios brasileiros. Mercantes ou de guerra, 548 navios e submarinos de dezessete países, incluindo Alemanha, foram afundados entre Brasil e África durante Segunda Guerra. Imagem de Trincheira tropical, livro de Ruy Castro Foto: Reprodução
  • Orson Welles veio ao Brasil para filmar o carnaval e, por cinco meses, dedicou-se dia e noite ao projeto. Mas a RKO, seu estúdio, não gostou do resultado. Trincheira tropical, de Ruy Castro
    Orson Welles veio ao Brasil para filmar o carnaval e, por cinco meses, dedicou-se dia e noite ao projeto. Mas a RKO, seu estúdio, não gostou do resultado. Trincheira tropical, de Ruy Castro Foto: Special Collection Research Center/University of Michigan
  • Os pracinhas levaram um pouco do Brasil para a Itália. Mas seu principal símbolo foi a cobra fumando no braço da farda. Trincheira tropical, de Ruy Castro
    Os pracinhas levaram um pouco do Brasil para a Itália. Mas seu principal símbolo foi a cobra fumando no braço da farda. Trincheira tropical, de Ruy Castro Foto: Arquivo Nacional
  • Trincheira tropical — A Segunda Guerra Mundial no Rio
De Ruy Castro. Companhia das Letras, 414 páginas. R$ 109,90
    Trincheira tropical — A Segunda Guerra Mundial no Rio De Ruy Castro. Companhia das Letras, 414 páginas. R$ 109,90 Foto: Companhia das Letras
postado em 06/07/2025 06:00
x