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Dudu Pelizzari se põe entre luz e sombras para encarnar primeiro protagonista

Revelado em "Malhação" em 2006, o ator paulistano Dudu Pelizzari, 40 anos, revela processo solitário e imersivo para dar vida a Caius, primeiro protagonista em 20 anos de carreira. "O protagonismo não envaidece, faz honrar a minha trajetória como artista"

O silêncio do apart-hotel em Curicica era tão denso que quase podia ser tocado. Nas paredes nuas, apenas o eco dos passos de Carlos Eduardo Formariz Pelizzari Junior, então mergulhado em um ritual peculiar: para encontrar Caius, seu primeiro protagonista na televisão após duas décadas de carreira, precisava primeiro se perder de si mesmo. "Eu sou um cara muito social, mas me isolei completamente. Nada de bares, praias ou amigos. Só eu, meus livros e uma gaita que tocava nas horas vagas", revela, em um dos momentos mais íntimos da conversa com o Correio.

Em O Senhor e a Serva, nova epopeia bíblica da Record, ainda em gravação, o ator Dudu Pelizzari — revelado em Malhação em 2006 — não interpreta um herói, mas um homem dilacerado. Caius é um comandante romano que, após incendiar o Templo de Israel no ano 70 d.C., perde a mulher amada e vê sua vida desmoronar. "Não é sobre um vilão ou mocinho. É sobre um homem que cometeu o irreparável e agora precisa conviver com seus fantasmas", explica o paulistano de 40 anos, sublinhando que o personagem "representa o homem atual, com as mesmas problemáticas, com as mesmas falhas trágicas, que vem acompanhando a existência ao longo desses milhares de anos assim".

Mas a palavra protagonismo em si não envaidece Dudu. "Me faz honrar a trajetória desse homem, me faz honrar a minha trajetória como artista". Ele conta que a preparação foi quase um exercício de ascese: "Me isolei dos amigos e cheguei a criar um diário como Caius. Escrevia cartas para a esposa morta, rabiscava mapas de batalhas imaginárias... Quando você passa meses nesse estado liminar, a fronteira entre você e o personagem desaparece".

A meticulosidade vem de sua formação no lendário Teatro Oficina, onde trabalhou por quatro anos sob o olhar incendiário de Zé Celso Martinez. "Zé me ensinou que atuar é uma forma de possessão. Você não representa; é possuído", diz o taurino, lembrando das noites intermináveis nos bastidores do teatro considerado patrimônio arquitetônico.

Essa entrega total marcou seus trabalhos mais ousados. Durante as gravações no Uruguai de Dom (série da Amazon), onde interpretou Van Damme, transformou a cela do presídio em um microcosmo de poder: "Dei nomes a cada figurante uruguaio que estava ali. O Catatau me passava cigarros com um piscar de olhos. O Bronco sussurrava segredos falsos no meu ouvido. Era uma coreografia de violência e cumplicidade", relata o artista visceral, que também revela sua fuga do maniqueísmo. "O maior erro do artista é achar que o vilão só tem coisas ruins e achar que o mocinho só tem coisas boas. É preciso enxergar a humanidade do vilão e enxergar o mau-caratismo de um mocinho. Isso traz as camadas do personagem".

Espelho contemporâneo

O Senhor e a Serva é seu quarto trabalho no gênero bíblico, mas Pelizzari insiste: "Caius é diferente. Enquanto Abner (de Reis) era pura ação física, aqui trabalho com a geologia da alma". E traça um paralelo perturbador: "Ele destrói o templo em nome do Império, como hoje destruímos relações em nome do capital. Sua jornada é sobre aprender a chorar — algo que nós, homens do século XXI, ainda não aprendemos", defende.

Enquanto finaliza as gravações, seu olhar se acende ao falar de Dona Beja, a superprodução da HBO Max: "Daniel Berlinski escreveu um texto que li como um romance de Tolstói. Meu detetive vive um amor proibido enquanto investiga crimes brutais — é Noite na Taverna com roupagem de faroeste brasileiro", define Dudu.

A comparação entre plataformas é inevitável: "Na tevê aberta, você constrói o personagem no voo. No streaming, temos o mapa completo desde o início. É como a diferença entre escalar uma montanha no escuro ou com um farol", exemplifica ele que atuou em produções como Negócio da China e A vida alheia, na Globo, e Carinha de anjo, no SBT. 

Nos bastidores, Dudu prepara seu projeto mais pessoal: um monólogo sobre Dom Pedro I, escrito pelo premiado Leo Lama. "Estou obcecado pela compulsão mentirosa dele. Como um homem que chorava ao compor músicas virou o grito do 'Independência ou Morte'?", questiona, antes de revelar: "Encontrei cartas onde ele confessa pavor da solidão. Esse será nosso ponto de partida".

Malhação e futuro

Ao relembrar seus primeiros passos como Fred, em Malhação (2006), uma risada escapa: "Eu era um menino de São Paulo que mal sabia andar na areia da praia. De repente, estava num universo de fama e exposição que não entendia". A voz ganha um tom mais sério: "Foi minha escola de sobrevivência. Me ensinou que a indústria é um animal que precisa ser alimentado, mas nunca domesticado".

Com 40 peças no currículo — incluindo a atual O nome do bebê —, Pelizzari define o palco como "o único lugar onde a mentira vira verdade absoluta". E conta um segredo: "Antes de cada cena em O Senhor e a Serva, eu recitava baixo um monólogo que escrevi para Caius. Era meu ritual para manter a conexão com aquela dor ancestral".

Questionado sobre seus próximos passos, Dudu responde com a calma de quem aprendeu a valorizar o processo: "Quero fazer um musical, dirigir um filme. Mas hoje meu fogo está em Dom Pedro — preciso exorcizar esse fantasma que me habita".

 

Marco Brozzo -
Marco Brozzo -
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