
Siron Franco ficava incomodado quando, no início da carreira, aos 20 e poucos anos, um crítico ou curador cobrava dele alguma unidade nas obras. "Eu tinha muito problema, porque todo mundo falava que eu não tinha personalidade, que cada hora meu trabalho era de um jeito. Quando eu comecei a vender, os caras falaram 'pô, o cara começa a colecionar, aí você muda tudo, não pode fazer isso'. E eu falava: 'Compadre, eu não dou conta de fazer do outro jeito. Vou estar escondendo coisas que eu não quero. Não vou fazer isso", conta o artista, hoje aos 78 anos de idade e autor de uma enorme tela de 2X5m feita com folha de ouro e pendurada logo na entrada da exposição Siron Franco: Observando o mundo desde o centro do Brasil, em cartaz na Cerrado Galeria.
O recado enviado por Siron ao mundo da arte há cinco décadas foi também uma senha de libertação. Na época, ele ficava tão angustiado com essa cobrança de uma coerência estética que chegava a destruir telas. "Eu fazia uns retratos para poder ganhar dinheiro, fazia a tela e destruía. Chegava no final do ano, destruía 100, 150 telas, botava fogo. Não queria esse tanto de coisa aí sendo vendido, sendo que aquilo era estudo. Queria ter uma liberdade, sabe?", explica.
A observação do mundo sempre foi o ponto de partida do artista goiano e é essa postura que marca as 20 obras da exposição, reunidas em uma curadoria de Agnaldo Farias, que acompanhou a produção no ateliê nos últimos três anos. Fora duas exceções, as pinturas são recentes e foram reunidas como um extrato da produção mais nova do artista, um dos nomes mais importantes da arte contemporânea brasileira. "Ele é um erudito do ponto de vista das artes visuais. Tem artistas que vão em linha reta, depurando, pegam um determinado intervalo e vão tratando, mergulhando cada vez mais profundo. Ele não é exatamente assim, ele abre muitas frentes, tem muita energia. Consegue, ao mesmo tempo que aprofunda, ampliar o espectro", avisa Agnaldo Farias.
Para que uma pintura comece a tomar forma, Siron Franco precisa ser tocado, mobilizado por um tema, uma cena, uma ideia que muitas vezes tem a ver com o contexto político, social ou ambiental ao seu redor. "De repente, vem o que eu chamo de chamada mesmo, ser chamado para fazer aquilo, é uma coisa que, às vezes, vem do estômago. Eu não tenho um adjetivo para falar o que eu sinto, mas é um impulso", garante.
As enchentes no Rio Grande Sul em 2024 estremeceram o Brasil e a imagem do cavalo Caramelo no teto de uma casa virou um retrato da tragédia, mas foi o drama dos cães que ficou gravado no olhar de Siron: eles aparecem em uma das telas expostas em Brasília. Os incêndios que devastaram Los Angeles em janeiro deste ano também impressionaram o pintor, amigo de pessoas que perderam casas. "São pinturas negras, pretas. Fiquei três meses em Los Angeles e pintei lá. Tenho amigos que perderam a casa e eu fiquei muito tocado com esse fogo louco, então entrei numa de trabalhar só com tinta preta. Você pode ver que tem vários tons", diz o artista.
Mas nada é literal na produção de Siron, cuja série Césio 137 e instalações em frente ao Congresso mobilizaram a cena artística brasileira nos anos 1980 e 1990 ao mesclar à arte um tom de denúncia que o artista sempre assumiu como necessário. "Quando eu fazia uma instalação, era para repor assunto que a mídia não repetia mais. Era uma forma de fazer com que eles retomassem aquele assunto", diz.
Além das dimensões — as maiores telas têm 2X5 metros —, o artista investiu em algumas experiências que fisgam o espectador. É o caso de uma enorme tela feita com folha de ouro, um ensaio abstrato que deixou de lado a figuração por completo. "O ouro é signo da pureza, da estabilidade, esse tecido que não que não se deteriora. Claro, tem um valor econômico, mas tem isso do ponto de vista simbólico da alquimia, da pedra filosofal, de transformar coisas impuras em coisas puras. É um grande transmissor de energia. E ele coloca numa tela que galvaniza a atenção, porque porque é deslumbrante, parece o ouro desfibrado, meio esgarçado", explica Agnaldo Farias, que escolheu apresentar a obra sobre um fundo roxo.
Na mesma sala está outra pintura cheia de inscrições em um alfabeto imaginário, um prototexto azul sobre fundo vermelho cuja possibilidade de leitura nunca se realiza. É, na ideia do curador, um artifício interessante proposto pelo artista. É uma obra muito gestual, com uma letra caligrafada sobre fundo homogêneo e plano. "São duas cores que, naquele tom, não se dão. Elas vibram muito e é incômodo de ler. E esse incômodo perpassa o trabalho", explica Farias. Incômodo é uma palavra que descreve bem o sentimento gerado por boa parte das obras de Siron Franco, pinturas que, dificilmente, deixam o espectador indiferente.
Siron Franco: Observando o mundo desde o centro do Brasil
Exposição de Siron Franco. Visitação até 4 de outubro de segunda a sexta-feira, das 10h às 19h, e aos sábados, das 10h às 13h, na Cerrado Cultural (SHIS QI 05 - Chácara 10)
Entrevista // Siron Franco
Questões políticas, ambientais e sociais estão sempre presentes no teu universo, no teu trabalho. Como é esse caminho entre a situação que te mobiliza e a criação da obra?
Elas aparecem mais quando são instalações. A pintura tem também, mas é menos nítido do que quando eu faço a instalação, porque eu faço uma coisa específica mesmo para a imprensa retomar aquele assunto, já que ninguém mais falava nele. Parece que quando deixam de falar, não tem. Agora, se não for obra de arte, não adianta ter denúncia. Primeiro tem que ser uma obra de arte. Tem que ter uma linguagem. Senão você está fazendo uma ilustração banal. E tem assunto que me tocou, mas não me levou a ponto de fazer uma obra. Eu fico pensando: se o Césio não fosse no bairro onde eu morei até os 19 anos, será que eu entraria naquela viagem? Eu não sei.
E você, o que te mobiliza a fazer?
Se eu sinto alguma compaixão pela violência contra aquelas pessoas, contra os animais, sobretudo. Aquele quadro que está embaixo na exposição, que tem aqueles dois cachorrinhos numa quase esponja, nuvem. Foi daquela enchente no Rio Grande do Sul. Eu tenho muita ligação lá. Tem grandes colecionadores, grandes amigos, artistas que eu conheci ainda bem garoto. É assim que funciona, observar o mundo. Por isso o Agnaldo escreveu que sou eu olhando o mundo desde o centro.
E você acredita que a arte pode influenciar mudanças sociais ou é uma coisa mais sutil?
Eu acho que tem um lado da própria arte, por exemplo, se você tiver uma casa e você cuida dessa casa e dá importância aos objetos, a visualidade desses objetos, você vai estar criando um ambiente saudável para você. Isso é uma coisa. Segundo, eu acho também que a arte salva a gente, no sentido de que é um espaço onde tudo pode ocorrer. O Ferreira Gullar fala que tem que precisamos da arte porque a vida não basta. Conheço muita gente que precisa de olhar para um quadro, é uma coisa que mexe com você por dentro mesmo. A pessoa fica horas olhando para o quadro e o quadro vai mudando, porque tem uma coisa chamada cor fisiológica, que é a partir de 25 segundos ou 20 segundos, dependendo de quem está olhando para um objeto, vai quase virar um holograma.
A questão da cor, ela vem antes ou depois de todo o conceito?
Eu nunca penso no antes ou depois. Eu começo e depois eu viro o quadro para parede, às vezes alguns ficam anos, fico sem olhar para ele. Aí, depois de um tempo, quando eu tiro ele de lá, ele me revela umas coisas que, no momento de fazer, eu não percebia. É um aprendizado, um quadro. Uma experiência única. Ele não precisa ter nenhuma relação com o outro, pode até ter, mas eu vejo como uma obra única, cada um é uma coisa. E o material também.
Pintar é um gesto mais político, mais estético, ou isso não vem ao caso na hora que você está criando?
Vem sim, porque quando você está criando, você está compondo. O pintor, ele faz sozinho. Ele é o primeiro espectador da obra. E ele é também seu primeiro crítico. Às vezes, tem quadro que nasce antes do tempo, ele tem uma síntese que, na hora que eu estava fazendo um outro conjunto de obra, eu não tinha ainda. Eles nascem, eles antecipam para uma coisa que vem lá na frente, isso fica muito evidente porque eu coleciono meu trabalho também. São coisas que antigamente eu não via. Você vai afinando um olhar. Quando eu faço, não quero dizer que eu estou falando sobre aquilo. O que eu busco, eu acho, é algo que você ainda não viu. Eu quero fazer algo que eu não vi ainda.
Como você está diante do Brasil de hoje? O que está te mobilizando?
Eu me coloco não no país só político, me coloco como um indivíduo, como ser humano, estou num planeta maravilhoso, maravilhoso. Eu tenho orgulho de ter nascido nesse país. Eu não relaciono o Brasil com nenhum político. Eu falo da biosfera, de todo o povo, dessa diversidade de frutas, de tudo. Eu me ligo nisso. É claro que as coisas que afetam o cotidiano, não tem como, você se liga, eu sou um cidadão normal, né? Eu não sou industrial, não tenho talento para isso. Mas consegui, mesmo neste país, continuar fazendo o que eu gosto, que é me descobrir enquanto um pintor que chega a fazer alguma coisa que tenha uma certa importância.
Nesta exposição, tem alguma obra que você considere que seja um ponto de virada na sua trajetória?
O problema é que eu estou sempre na virada. Você entende? Eu nunca pensei em investir numa ideia para depois chegar numa síntese dela. Isso é um pensamento muito europeu. Eu parto mais para a caverna, os desenhos indígenas. Para conhecer um caminho que eu nunca vi. É como se eu morasse num lugar e, depois de tantos anos, eu falo: "Bom, a família cresceu. Vou ver o que é que tem lá naquele morro". É essa a minha caminhada. No dia que eu morrer, aí sim já dá para ver para onde eu estava indo, para onde. E quando eu não pinto, eu me sinto cansado.
Diversão e Arte
Diversão e Arte
Diversão e Arte