Cinema

Festival de Brasília: histórias de luta marcam o enredo de 'Aqui não entra luz'

Primeiro longa da cineasta Karol Maia, Aqui não entra luz, a ser exibido hoje na Mostra Competitiva do Festival de Cinema, dá voz às trabalhadoras domésticas e suas respectivas batalhas

Aqui não entra luz: dramas do trabalho doméstico -  (crédito: Divulgação/Apiário Estúdio Criativo)
Aqui não entra luz: dramas do trabalho doméstico - (crédito: Divulgação/Apiário Estúdio Criativo)

Filha de ex-trabalhadora doméstica, a cineasta Karol Maia estreia o primeiro longa da carreira, Aqui não entra luz, nesta quarta-feira (17/9), na Mostra Competitiva Nacional no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O filme, narrado em primeira pessoa, reúne entrevistas com mulheres que revelam lembranças emocionantes da realidade no trabalho doméstico e que dividem relatos de situações de violência e exploração. Vindas dos quatro estados que mais receberam mão de obra escravizada do país — Bahia, Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro, elas expõem a luta constante por direitos e para que suas filhas possam sonhar com outros futuros.

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Inspirações para o título do longa, a arquitetura da senzala e do quarto de empregada são retratados no filme a partir das marcas de segregação e racismo que tais espaços carregam. A obra, como um todo, é um reconhecimento da batalha de mulheres que resistem diariamente em condições de trabalho muito precárias. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, são cerca de 6 milhões de trabalhadores domésticos — entre eles, menos de um quarto tem carteira assinada. Aqui não entra luz é exibido a partir das 21h, no Cine Brasília.

Entrevista // Karol Maia

1. Como você resume seu filme? Como surgiu a ideia de documentar os rastros deixados pela escravidão na arquitetura? Quem são as mulheres que aparecem no longa?

Eu acredito que Aqui não entra luz é um filme sobre a história do Brasil. E é sobre a história do Brasil porque, sem o trabalho doméstico, sem as trabalhadoras domésticas, sem as amas de leite, sem as babás, esse país sequer existiria como é hoje. O trabalho doméstico é uma espinha dorsal do Brasil. Ele está tão presente no nosso dia a dia que as novelas trazem a figura da trabalhadora doméstica frequentemente para a narrativa, de uma forma totalmente naturalizada. O trabalho doméstico está no nosso imaginário, mas também está no cotidiano: ou você conhece uma trabalhadora doméstica, ou já contratou uma.

A ideia de fazer o filme surgiu a partir de uma experiência no trabalho que me fez questionar o sentido e a função do “quarto de empregada” dentro das casas brasileiras. Rapidamente, fiz a conexão com a senzala e percebi o quanto esses espaços são uma extensão direta um do outro. Acho importante dizer também que o racismo pode ser desenhado na arquitetura, no pensamento que segrega as pessoas em espaços. O racismo ambiental é um exemplo disso: onde as pessoas negras moram e por que suas moradias são justamente as mais atingidas pelas mudanças climáticas. Isso também é racismo pensado a partir do espaço, de como e onde se habita.

O filme foi rodado em cinco estados, sendo quatro deles os que mais receberam mão de obra escravizada durante o Brasil colônia. Em cada estado, além de filmar senzalas e quartos de empregada, eu também procurava conhecer trabalhadoras domésticas que já haviam dormido nesses quartinhos, porque era indispensável contar essa história também pelo olhar das mulheres que habitaram esses lugares.

2. Como foi o processo de gravação do documentário? Quanto tempo durou a idealização e a filmagem? Qual foi o orçamento total utilizado para o longa?

O filme foi gravado em algumas etapas. A maior parte aconteceu em 2019. Depois de dois anos, voltei a filmar de forma mais amadora, eu mesma segurando a câmera e registrando algumas cenas. Em 2024, fizemos uma nova etapa de filmagem. Acho que o filme foi se transformando junto comigo, ele foi se moldando conforme eu também me construía enquanto diretora e cineasta. O filme reflete muitas fases da minha vida, da minha percepção sobre a obra e da minha relação com o tema. Isso é bem visível nas imagens: à medida que o tempo passa, as formas de filmar mudam e espelham esse processo. Quando eu mesma pego a câmera, por exemplo, a filmagem é mais amadora, a câmera é instável, mas isso também cumpre uma função narrativa: a sensação de pertencimento à minha própria história.

A ideia surgiu em 2015 ou 2016, e em 2017 o projeto começou a tomar forma de filme. Em 2018, consegui o primeiro financiamento. Hoje, o filme tem oito anos de trajetória. O orçamento total foi pouco mais de R$ 1 milhão, o que é muito baixo considerando o tempo de realização e todas as pessoas envolvidas. Fazer cinema é caro e leva muito tempo. Felizmente, encontrei bons parceiros que acreditaram na ideia e toparam abraçar o projeto.

3. Aqui não entra luz é seu primeiro longa autoral e faz parte da Mostra Competitiva de um dos mais importantes festivais de cinema do país. O que seu filme representa na Mostra? Que desafios você encontrou ao trabalhar no seu primeiro longa autoral?

Esse é o meu primeiro longa-metragem. Quando decidi fazê-lo, eu não tinha dimensão do que isso representava. Eu era muito nova, tinha pouca experiência no audiovisual e apenas intuía que, pela densidade do tema e pela quantidade de questões que queria abordar, ele precisava ser um longa. Não tinha muito conhecimento sobre estrutura narrativa, mas senti que era esse o caminho. Estar neste festival, neste momento da minha vida e do país, é muito grandioso. Quando desenhamos a estratégia de festivais, começamos chutando alto: queríamos chegar ao Festival de Brasília. Isso se realizou, e confesso que fiquei bastante emocionada. Foi muito bom termos sonhado grande e conseguido.

É interessante olhar a programação da Mostra Competitiva e ver que os filmes trazem reflexões sobre questões coletivas, estruturais e muito brasileiras, cada um com sua linguagem. Acho que todos nós, realizadores, estamos questionando o Brasil. E eu o questiono porque amo esse país. Estar com esse filme na Mostra significa somar a esse discurso coletivo sobre o país e sobre o cinema que queremos fazer, assistir e criar como legado.

Fazer um longa é uma missão difícil, vira uma obsessão. A obra vai te transformando, trazendo incômodos pessoais, artísticos e autorais. A autoria é um lugar desconfortável, cheio de questionamentos.

4. Entre os sete longas da Mostra, cinco são de ficção e apenas Aqui não entra luz e mais um são documentários. Qual é a importância dos registros documentais para o audiovisual? Quais são os desafios de fazer um documentário?

Uma coisa que tenho escutado bastante durante o festival é a importância da memória: preservar e difundi-la. Meu contato com o documentário começou quando morava na periferia da Zona Leste de São Paulo. Eu via muitas coisas incríveis lá, mas, na TV, só se falava da periferia de forma negativa. Meu desejo era mostrar que ser periférico também é digno, que há dignidade nesse espaço. Eu não imagino Aqui não entra luz como uma ficção. Ele só poderia ser documentário e eu uso o filme para revelar sobre meu próprio processo com ele.

Os desafios são muitos, sobretudo financeiros. Em editais, o apoio para documentário costuma ser menor que para ficção. A distribuição é mais difícil, assim como atrair público. Mas o documentário permite encontros únicos: pessoas que dificilmente estariam diante de uma câmera em uma ficção acabam se tornando presença marcante e inesquecível.

5. Este ano, o Festival de Brasília comemora 60 anos de existência. O que ele representa para o audiovisual brasileiro? E, como cineasta, quais são seus desejos para os próximos 60 anos do festival?

Essa é minha primeira vez no Festival de Brasília. Estou achando muito bonito o cuidado na curadoria e a presença das pessoas nos eventos. Estar aqui com meu filme é um momento muito importante para mim e para a trajetória de Aqui não entra luz. Esse marco ficará registrado de forma muito especial.

Simbolicamente, participar justamente na celebração dos 60 anos me faz desejar que, nos próximos 60, mais pessoas negras, indígenas, trans e realizadores de fora do eixo Rio-São Paulo, do Nordeste, do Norte, do Sul, consigam fazer filmes com condições econômicas e criativas adequadas, com liberdade para errar sem medo e com a segurança de que suas obras serão preservadas para a história do país. Que a gente possa imaginar e criar com coragem e liberdade.

Espero que Aqui não entra luz também se torne um filme capaz de questionar o Brasil sobre o que fizemos com nosso passado e o que queremos do futuro.

Serviço

Mostra Competitiva Nacional
Quarta-feira (17/9), no Cine Brasília (EQS 106/107), às 21h, exibição do longa Aqui não entra luz, de Karol Maia. Sessão acompanha os curtas A pele do ouro, de Marcela Ulhoa e Yare Perdomo, e Cantô meu alvará, de Marcelo Lin. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). No Complexo Cultural Planaltina, às 20h, a mesma programação terá entrada livre.

  • Aqui não entra luz reúne relatos de lutas e batalhas enfrentadas por empregadas domésticas
    Aqui não entra luz reúne relatos de lutas e batalhas enfrentadas por empregadas domésticas Foto: Divulgação/Apiário Estúdio Criativo
  • O filme marca a estreia de Karol Maia
    O filme marca a estreia de Karol Maia Foto: Divulgação/Apiário Estúdio Criativo
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postado em 17/09/2025 05:42 / atualizado em 17/09/2025 16:11
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