Festival de Cinema

Uma acinzentada revisão de mundo ocupa a tela do Festival de Brasília

Filme de Davi Pretto, Futuro Futuro revela um futuro distópico e utiliza imagens de inteligência artificial na composição de uma proposta reflexiva

Futuro Futuro: último concorrente a ser apresentado no Festival de Cinema -  (crédito:  Divulgacao)
Futuro Futuro: último concorrente a ser apresentado no Festival de Cinema - (crédito: Divulgacao)

Ao falar do último concorrente da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Futuro futuro, o diretor gaúcho Davi Pretto sublinha tratar-se de uma ficção distópica que se deparou com uma distopia real. O projeto foi financiado por um prêmio de baixíssimo orçamento de R$ 1 milhão, com previsão de filmagens em 15 dias. "Nos últimos três dias de filmagem, aconteceu a maior enchente da história do Rio Grande do Sul (em maio de 2024), uma tragédia de proporções apocalípticas que destruiu cidades, casas, sonhos e vidas. Porto Alegre, onde vivo e filmávamos, também foi muito atingida. Com isso, as filmagens foram interrompidas e só conseguimos retomar meses depois com o orçamento ainda mais prejudicado. Sem o apoio da equipe, elenco e fornecedores, não teríamos conseguido terminar o filme. Essa tragédia também acentuou algumas ideias que eu tinha ao filme", conta.

Do limão, veio a limonada: imagens de inteligência artificial (criadas ao longo de seis meses), previstas no roteiro, auxiliaram na finalização, uma vez que as locações foram inundadas e se tornaram inviáveis. Interessado no caminho entre o real e o fantástico, entre gêneros de cinema e experimentação, Pretto ressalta o uso de uma chave mais "sensorial, meditativa, impura e labiríntica". No enredo, um homem sem memória chamado K (interpretado por Zé Maria Pescador) acorda em meio "a um curso decadente para pessoas em vulnerabilidade cognitiva como ele". Num futuro próximo, em cidade chuvosa, há uma doença neurológica esparramada, que causa amnésia e tolhe a capacidade de se imaginar imagens. "Nesse curso, K conhece e fica obcecado com um dispositivo IA chamado Oráculo, inventado para ajudar pessoas como ele, um aparelho que promete resgatar as memórias perdidas que estão dentro de sua cabeça. Sua obsessão com esse dispositivo levará K a uma jornada trágica e absurda", adianta o diretor.

Em Futuro futuro, a função de clickworker, ou "trabalhador de cliques", ganha relevância. "Trata-se do termo para quem trabalha em micro tarefas, on-line, para executar diversas funções que a inteligência artificial não consegue executar integralmente ou trabalhos humanos necessários para que a automação exista", demarca o diretor. Grosso modo, a expressão encerra o trabalho invisível, humano, por trás da automação. "É um guarda-chuva que traz desde moderação na rede social à complementação de frases e revisão de textos de chatbots, passando por incrementos no reconhecimento facial e na catalogação de imagens para treinamento de inteligência artificial. São trabalhos em que se ganha por clique e é uma enorme mão de obra hiper-precarizada, normalmente localizada no Sul global, a serviço das big techs", conclui.

Entrevista// Davi Pretto, cineasta

O filme flerta com o afrofuturismo?

Não, não buscamos isso. O filme dialoga com obras literárias de ficção especulativas da Ursula Le Guin, Philip K Dick, talvez um pouco com Jeff Vandermeer (do movimento New Weird) e principalmente de livros de não ficção políticos e especulativos de Mark Fisher, Peter Frase e Jonathan Crary. Esse filme surge a partir do meu encontro com a obra desses e outros escritores que pensam o nosso futuro, não como uma profecia, mas como um diálogo com o presente. Como já disse Steven Shaviro, a ficção científica é a sombra que o futuro lança sobre o presente.

Qual é a estética do filme?

A da eterna precariedade do cinema latino-americano, precariedade que gera inventividade, é estética da impureza, da mistura, do contraste, da provocação, da porosidade e também da meditação. É uma proposta que quer dar corpo, imagem e som a um outro tipo de imaginário de futuro, frontalmente oposto ao imaginário hegemônico do cinema estadunidense, por exemplo.

Você crê num futuro distópico?

O que o filme propõe, e que eu acredito, é que utopia e a distopia estão intrinsecamente relacionadas. Uma utopia sempre precisa de uma distopia simultaneamente em outro lugar. Ao mesmo tempo, se arranhamos a superfície da utopia podemos encontrar uma distopia escondida em seu interior, tal qual utopias podem resistir dentro de distopias. Por isso, o título possui duas vezes a palavra Futuro. O futuro nunca é um, ele é dois.

A inteligência artificial veio para bagunçar geral?

A inteligência artificial, que nomes de peso como Miguel Nicolelis e Kate Crawford dizem criticamente que não tem nada de inteligente e nada de artificial, ao meu ver é um projeto ideológico de controle, vigilância, manipulação e emburrecimento disfarçado de entretenimento, de fantasia, de ilusão, e de promessa de uma tecnologia onírica e profundamente transformadora (que ninguém sabe ainda se é verdade ou mesmo possível). Projeto este criado por uma meia dúzia de homens bilionários das big techs que, quase todos eles, já controlam toda comunicação global no mundo virtual. Não é à toa que se fala muito em tecnoimperialismo, tecnofeaudalismo, tecnoautoritarismo, enfim, termos para dar conta do que tudo isso significa. Chatbots, vídeos gerados artificialmente etc., tudo isso vai nos inundar de um mundo de imagens e informações que não saberemos se são verdade ou mentira. Em um país como o Brasil, que tem dificuldade de lembrar do seu passado e que elegeu há pouco tempo um presidente que adora mentir, esse cenário me parece ainda mais alarmante.

Há mensagem pretendida?

Há, sim, intenção; não mensagem. A ideia era criar um filme com dois tipos de imagens contrastantes. As imagens que filmamos são em uma janela 4x3 mais quadrada, com uma textura mais ruidosa e impura. Ao lado das imagens geradas por IA, que eu criei, que são sempre em 16x9, mais horizontais e mais puras, assépticas e sem ruído. Essas imagens se alternam ao longo do filme gerando uma reflexão sobre o próprio futuro das imagens e do cinema. Isso, evidentemente, é carregado de significado, mas é algo que espero que quem veja o filme pense por si mesmo e tenha sua interpretação.

Quais teus mestres no cinema?

A cinefilia e o ambiente cinéfilo são minha grande inspiração. A cinefilia me faz lembrar que existem inúmeros realizadores e realizadoras que transformaram o cinema, muitos cânones, mas também muitos esquecidos, ignorados e apagados. E ainda, que o cinema precisa dos cinéfilos, pesquisadores, professores, programadores, arquivistas, das cinematecas, das salas de cinema públicas e os servidores públicos da cultura, dos festivais, todos esses são meus mestres. Em um tempo onde o cinema parece tão irrelevante na vida social e política, a cinefilia e o ambiente cinéfilo me motivam a seguir em frente.

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Serviço

Filmes da noite

No Cine Brasília (EQS 106/107), às 21h, exibição do longa Futuro futuro, de Davi Pretto. Sessão acompanha os curtas Fogo abismo, de Roni Souza e Replika, de Piratá Waurá e Heloisa Passos. Ingressos, R$ 20 (inteira), a partir das 14h, na bilheteria, ou por ingresso.com No Complexo Cultural Planaltina, às 19h45, a mesma programação terá entrada livre.

 

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postado em 19/09/2025 13:22
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