
Nos idos de 1989, Julio Bresane venceu o prêmio Candango de melhor direção, por Os sermões. Sentada no Cine Brasília, a então estreante cineasta de longa, Lúcia Murat, desbancou o mestre com o título de melhor filme entregue para o longa Que bom te ver viva, repleto de experiências pessoais. "Fique culpada e sem graça, por causa do Bressane", diverte-se a "guerrilheira durona", em entrevista ao Correio, que lembra de momentos de dor que a marcaram, como a morte da icônica Leila Diniz, em 1972. No Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2025, Lúcia foi agraciada com o prêmio que leva o nome da atriz de Todas as mulheres do mundo e, de quebra, pode apresentar o mais novo filme (premiado no Festival de Berlim), Hora do recreio, para jovens que lotaram o Cine Brasília.
A juventude atravessada pela ditadura militar, além de ser tema de Que bom te ver viva, é tema de Uma longa viagem, dedicado ao irmão da cineasta. "Evidente que Que bom te ver viva é um filme fundamental na minha vida. Foi meu primeiro longa-metragem e premiadíssimo. Foi, ainda, o filme com o qual passei a circular em festivais internacionais — me colocou no mundo do cinema", puxa Lúcia da memória. Ao tratar do destino e das marcas em ex-presas políticas, o filme ainda acolhe uma intervenção fantasiosa ligada à loucura e a questões de sobrevivência. Politizada por excelência, Lúcia faz um cinema que mobiliza personalidades do porte do sociólogo Betinho (morto em 1997), que pontuou: "Este filme (Que bom te ver viva) deveria ser exibido nos programas do TRE em todo o Brasil, para que ninguém esquecesse essa história". Atenta ao cenário atual do país, a diretora, sempre à espreita de poderosos, opositores e omissos, fala ao Correio sobre anistia, cinema, ditadura e bandidagem.
Como é ser a decana do cinema e do feminismo no festival?
Decana não tem jeito de fugir (risos). Estou fazendo 77 anos. Se sou decana do cinema aí é mais complicado (risos). Fiquei muito emocionada quando sobre da homenagem. Leila foi um ícone da minha geração: era o exemplo da liberdade. E quando ela faleceu, eu estava presa numa vila militar. Quando soube (da morte), chorei muito. Aquilo foi uma coisa horrível, aos 27 anos e de acidente aéreo?! Ela representava coisas que ficaram muito na minha memória. Nunca a conheci, pessoalmente; já tinha visto no teatro. Há duas imagens dela que ficaram eternas na minha vida. Uma é da gravidez porque, na minha infância, quem aparecia com a barriga de grávida na praia, em Copacabana, eram as gringas. As brasileiras tinham que ficar baby doll; era algo ridículo. E outra coisa foi uma entrevista dela ao Pasquim, pela quantidade de palavrões — que era algo de que gostávamos muito de falar porque era um modo de contestar a classe média.
Seus colegas de festival têm partido... O que fica do cinema deles para você?
Sinto muita falta da minha geração neste festival. Cacá Diegues (morto em fevereiro), por exemplo, até era mais velho — o cinema novo era uns dez anos mais velho do que eu. Evidente que, pela filha cineasta (Julia Murat), eu conheço a nova geração. Então são os amigos da minha filha de quem gosto muito. É um aprendizado para mim também. Persistem ainda figuras importantes como o Murilo Salles o José Joffily que são muito amigos meus. Sou da geração por chamada geração Paissandu no Rio de Janeiro. Víamos todos os filmes da nouvelle vague, coisas que estudei, total. Das sessões, íamos para o bar, ao lado, discutir. A partir do Alain Resnais, por exemplo, discutíamos fazer ou não a revolução. Havia presença das discussões e das análises muito grandes. Quando se está na transição da adolescência para a adulta, o que te influencia te influência pelo resto da vida. Vi cinema novo, nouvelle vague, cinema italiano.
O cinema eu te ajudou a processar o trauma da prisão, que foi motivada por...
Eu fui geração 1968. Fiz o movimento estudantil, era vice-presidente do diretório da minha faculdade e fui presa em Ibiúna Depois disso, como muita gente do movimento estudantil, entrei na clandestinidade, a partir do ato institucional nº 5, em dezembro de 1968. Aí fiquei uns dois anos clandestina, participando da resistência armada e depois fui presa por quase quatro anos. Eu tinha uns dez processos; meu advogado (daquela época), dia desses, me disse: "você deu muito trabalho" (risos). Você não fica parada, ainda bem, não se fica parado no tempo. Lembro que, quando eu fiz o meu primeiro longa-metragem, do qual tenho maior orgulho (Que bom te ver viva, premiado em Brasília — pelo júri, popular e crítica). Lembro, que, pelo cinema fiz loucura. O bandido da luz vermelha me marcou: na clandestinidade arrisquei a vida para ver aquele filme (de 1968). O bandido... (filme) era o representante mais avançado da minha geração que estava ali fazendo guerrilha.
O que impulsiona teu cinema?
Ao sair da cadeia, depois da relação como espectadora de cinema, descobri o cinema de uma outra maneira. Ao fazer cinema, com o média O pequeno exército louco (1984), vi no cinema a coisa fundamental: a possibilidade de você levantar questões. Isso nas relações de imagens, sons e músicas. Você levanta muitas questões que não se fecham. Eu tinha vivido uma situação de violência muito limite, grande mesmo, fui torturada, quase perdi a perna. Quem é o outro; quem é o torturador?; isso passou a me intrigar até em filmes que não discutem ditadura. Meus filmes se preocupam com a violência e com o outro. Quando eu fiz, Que bom te ver viva, pensei numa maneira de abordar a tortura de diferentes aspectos. Daí, sem inventar a roda, recorri ao hibridismo, no misto de ficção e documentário, uma coisa bem inusitada. Circulando com o filme, na esfera internacional, vi que se tratava de uma tendência do cinema, esse rompimento entre o limite entre a ficção e o documental. De alguma maneira, ali, eu estava naquele processo.
Você esteve em Berlim com Hora do recreio, sobre jovens. Tem sido prestigiada no Brasil também?
Ganhei um prêmio, numa experiência ótima. Estive no Festival de Berlim, antes, duas vezes (com Doces poderes e Maré — Nossa história de amor). Voltei na mostra Generation. Foi muito bom e fiquei muito emocionada com uma menção honrosa de melhor filme. É um filme para adolescentes, tanto que, no festival houve uma sessão linda. Vieram uns 400 alunos das satélites. Eram do ensino médio. O debate foi ótimo. Eles têm muita empatia com o filme que discute a questão de racismo, de violência, de feminicídio, a partir do olhar deles, jovens. Há identificação, eles se veem.
E esse momento do cinema brasileiro no exterior?
Da mesma forma como você teve a grande onda do cinema novo, estamos tendo uma boa onda agora É assim, há muito tempo que a gente não tinha tantos filmes sendo premiados lá fora, e sendo bem recebidos. Acho que existe uma expectativa. Nos anos 2000, houve o estouro do cinema argentino. Você chegava em Paris, e tinha vários filmes argentinos. Se você tem uma onda como a do Brasil, é bom, porque os distribuidores te procuram, assim como os negociantes mundo afora. Há muito mais possibilidade de se abrir espaço. O Hora do recreio, a partir de Berlim, despertou o interesse de festivais do mundo inteiro.
Uma pessoa anistiada é capaz de ser contra a anistia?
São momentos diferentes. Uma coisa que o Brasil não pode esquecer é que aquela anistia, da forma como foi feita, foi uma foi a anistia também da impunidade. Porque foi a anistia que anistiou os torturadores. Sou contra a anistia, hoje, porque eu sou contra a impunidade. Eles têm que ser punidos. Estamos numa situação totalmente diferente. Eu fui anistiada depois de quatro anos presa, depois de muito tempo, pude responder em liberdade. Fui muito torturada, algo que não recomendo a ninguém. É aquela coisa que a gente fala hoje em relação ao Bolsonaro: ele tem que ter a consciência de que, diferentemente da ditadura, ele está tendo advogado, ele recebe visitas. Toda a lei está do lado dele. E a gente não teve isso.
Como viu as situações de presidentes como Collor, Lula e Bolsonaro, junto à justiça?
São situações muito diferentes. Quando da eleição do Collor, lembro que lançava o Que bom te ver viva, quando teve a eleição Collor x Lula. E foi uma tragédia a vitória do Collor porque houve um ódio à cultura muito grande, algo que vimos repetir depois com a extrema direita, com Bolsonaro. Quando Collor assumiu, ele terminou com Embrafilme. Daí houve a suspensão do lançamento do meu filme. Eu não podia nem pegar a cópia do filme para ir para o exterior. Tivemos uma perseguição imensa. Lula é preso, e depois, os advogados conseguem eliminar as ações contra ele, demonstrando de que não tinha condição da maneira como foi feito — foi uma perseguição também. E em relação ao Bolsonaro, hoje, acho que você tem uma justiça sendo feita de uma forma muito democrática. Os julgamentos são televisionados, você acompanha o tempo todo. Ele tem todo o direito a defesa. É uma outra situação!
Como vê o país de hoje?
O Brasil está em busca da democracia, o que é muito difícil, mesmo, depois de 21 anos de ditadura. Houve muito tempo de impunidade, porque esses ditadores e esses torturadores nunca foram punidos. E isso permite que hoje a tortura continue em todas as delegacias, na periferia. Sem a impunidade talvez a tortura não existisse da forma tão ampla como continua existindo, de uma outra maneira, não em cima de presos políticos, mas nos pobres.
Diversão e Arte
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