Brasil e Estados Unidos, com passado de serem irmanados, despontam no longa paraibano Corpo da paz, de Torquato Joel, atração de hoje na competitiva do festival. Visualmente, o filme bebe das imagens de David Halliday (inspiração para o fotógrafo Rodolpho de Barros). Em tom sépia, as imagens remeteram às amareladas fotografias da família de Torquato, dono de infância rememorada em preto e branco. Corpo da paz, para além da "curuba" (regionalismo para escabiose, a sarna) resgata diretas memórias de Torquato. "Lembro bem que, eventualmente, minha mãe preparava um almoço para recepção de um novo pesquisador recém-chegado ao DNOCS (Centro de Pesquisas do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). O centro encerrava uma bolha de fartura diante da pobreza que o circundava. Ao redor, sobreviviam pequenos agricultores, muitos meeiros, que tinham o algodão mocó como principal fonte de renda", explica.
- Leia também: Festival de Cinema: Protagonismo feminino dá o tom do terceiro dia de Mostra Competitiva
Filmado desde 2019, o longa foi finalizado, agora, com recursos aprovados pela Lei Paulo Gustavo. Na trama, no sertão paraibano dos anos de 1960, o garoto Teobaldo (Giovanni Sousa) trava contato com Greg (Vinicius Guedes), pesquisador americano recém-chegado à região. Entre ambos, há Gentil (Alex Oliveira), elemento do receptivo ao estrangeiro, que o diretor adianta "ser uma expressão emblemática do fenômeno social do viralatismo". "É um filme minimalista e de sutilezas, principalmente por conta da repressão na época em que as falas eram à boca miúda", avalia. Num contraponto, o premiado diretor do curta Passadouro (1999) reforça que o imperialismo não é questão de hoje — "contudo, diferentemente do período da Guerra Fria, eles escancaram agora as pretensões de sempre, sem nenhum pudor".
Na "gama plural de cinematografias" em que bebeu, o paraibano de Sousa aponta nomes de Vladimir Carvalho e Linduarte Noronha (de Aruanda). "Ambos foram referência a toda uma geração que pensava cinema em termos das questões sociais", diz.
Ex-estudante de engenharia e jornalista (nunca posto em campo), o artista de Transubstancial (curta sobre Augusto dos Anjos), por anos viveu "enfurnado nas salas de cinema". Cioso de um cinema que equilibre simplicidade, "sem perder a profundidade", Torquato vibra com os jovens interioranos que fazem curtas sob olhares singulares, embalados por dicas dele na Paraíba e no Rio Grande do Norte.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Em Brasília, há 26 anos, o curta Passadouro rendeu ótima surpresa de reconhecimento. "Diante da imensa plateia do Cine Brasília, lembro que eu travei; sequer consegui dizer uma palavra no palco". No novo filme, a inconformidade (com o estado das coisas), brota da ótica de uma criança. "Há sincronicidade na exibição do filme. Corpo da paz é sobre soberania em duas instâncias: soberania de um povo em seu território e soberania sobre seu próprio corpo, o território mais sagrado, pessoal e intransferível", adianta.
Saiba Mais
Entrevista // Torquato Joel, cineasta
De que trata o longa em competição?
No momento em que o Brasil entra na Aliança para o Progresso, programa de ajuda humanitária de cooperação entre os Estados Unidos e os países da América Latina, nos anos de 1960, o filme entrecruza as vidas de Teobaldo, em seus primeiros passos na descoberta de sua sexualidade, e Greg, um pesquisador americano recém-chegado ao Centro de Pesquisas do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca. Enquanto Teobaldo enfrenta o embate entre desejo e repressão, o americano desenvolve suas enigmáticas pesquisas, supostamente para aprimorar o algodão mocó, o “ouro branco” redentor do Nordeste.
Como tem visto questões de interferência estrangeira no país? O Corpo da paz traz a figura de um estrangeiro infiltrado?
Em 2012, eu realizei uma pequena peça de audiovisual para divulgar a produção de pequenos agricultores de algodão colorido da Paraíba. Foi nessa ocasião que conheci um dos mais importantes pesquisadores sobre o assunto, Napoleão Beltrão, do Centro de Pesquisas da Embrapa de Campina Grande. Perguntei a ele se teria havido sabotagem do algodão mocó, espécie que praticamente foi dizimada pela praga do inseto bicudo. Eu já tinha ouvido relatos da população do sertão de que americanos eram os responsáveis pela introdução do bicudo na região. O algodão mocó é uma espécie plenamente adaptada à Caatinga, provavelmente originária das serras de Acari, no Seridó do Rio Grande do Norte, uma planta muito resistente à seca, com excelência na qualidade da fibra, na finura da mesma e no alto rendimento por hectare. Beltrão me disse que não descartava a hipótese de sabotagem, pois o inseto apareceu nos anos 80 na região de Campinas, São Paulo, e, em cerca de dois meses, já estava nas proximidades de Campina Grande, na Paraíba. Uma propagação muito rápida para uma distância tão grande entre as duas cidades e em tão curto espaço de tempo. Coincidência ou não, Campinas e Campina tinham centros de pesquisas da Embrapa que recebiam pesquisadores americanos com regularidade. Segundo Beltrão, tudo seria uma hipótese, sem provas, embora plausível.
O filme encampa denúncias?
Sabemos muito bem quais são as práticas imperialistas ianques no que se refere à sabotagem, bisbilhotando recursos naturais de outros países ou tramando golpes pelo mundo, em particular no seu “quintal”, a América Latina, para atender seus interesses. Vimos, dias atrás, o secretário de defesa americano do governo Trump, Pete Hegseth, falando em “recuperar nosso quintal” ao se referir à América Latina. No filme, o que construímos, em termos narrativos, foi uma licença poética para especular sobre
possíveis práticas suspeitas, ou tentativas anteriores ao surgimento do bicudo. Pesquisadores americanos frequentavam o centro de pesquisas do DNOCS em São Gonçalo, distrito de Sousa, no sertão paraibano, em plena ditadura civil-militar. O centro era um ambiente de excelência no desenvolvimento de alternativas agrárias para enfrentar os efeitos devastadores da seca. Na narrativa do filme, no microuniverso das famílias dos funcionários do DNOCS, encontra-se o garoto Teobaldo. Parte dos relatos de Teobaldo é fruto da realidade que eu vivi. Sou filho de um funcionário do DNOCS e minha infância foi ambientada em São Gonçalo. Há personagens inspirados em familiares meus ou em gente que gravitava em torno da minha casa.
O ambiente de opressão e de coronelismo se faz forte na narrativa?
O coronelismo se renovou para permanecer o mesmo, em boa parte foi ocupado por emergentes na política. Mas o filme não entra nessa seara, a gente aborda um sertão pouco visto ou falado, que ensaiou um desenvolvimento a partir dos projetos de construção de grandes barragens, sobretudo no período Vargas. Vale salientar que, nos anos 60, para conter os efeitos de Cuba na América Latina, o governo de John F. Kennedy criou, em parceria com países da região, a Aliança para o Progresso, supostamente com a intenção de implementar o desenvolvimento econômico e reduzir a pobreza nos países envolvidos. Como a Aliança, havia também um outro programa denominado Corpo da Paz, de ajuda humanitária à população vulnerável, com um voluntariado arregimentado entre civis americanos.
Há transformações latentes na vida do personagem central?
Teobaldo tem a sorte que não tive quando da descoberta da sexualidade. Ele tem a oportunidade de se recompor logo que o trauma se instala. Ele é justamente o preenchimento do vazio no enfrentamento do conflito entre ciência e religião, tendo em vista que a construção do personagem Teobaldo parte do ponto de vista de minha história. Com esse personagem central, o cinema me dá oportunidade de ressignificar meu passado para viver o presente e quiçá um futuro. Sou ageless, uma expressão que vi por aí, me sinto em descompasso com boa parte de minha geração. Nem sou jovem nem velho. Talvez a convivência intensa com jovens nos projetos de interiorização tenha fomentado essa sensação em mim.
Existe lacuna na polifonia de expressão nordestina, em termos criativos?
O Nordeste é plural hoje. O cinema da região tem expressado muito bem essa diversidade, seja urbana ou rural. Há uma gama de filmes que tratam essa multiplicidade pelo fato de termos tido oportunidade de produzir mais nos últimos tempos. Meus mestres e mestras do Brasil profundo são representados no filme pela figura de Mãe Joaninha, uma entre tantas anciãs que detinham e ainda detém o conhecimento ancestral das plantas da Caatinga. No filme, ela é representada pela participação da coquista Vó Mera, a mais emblemática personalidade do coco de roda da Paraíba.
Dá para adiantar um elemento surpresa importante na trama (risos)?
Em termos de adjacência na estrutura, os anos 60 são anos fundantes da Teologia da Libertação. Ela é representada por um padre progressista nas confissões de Aurora (Fabíola Morais), mãe de Teobaldo e de Lavôr, o irmão mais velho do garoto. No confessionário, Aurora tem uma outra perspectiva sobre as normas rígidas com as quais foi forjada.
FILMES DA NOITE No Cine Brasília (EQS 106/107), às 21h, exibição do longa Corpo da paz, de Torquato Joel. Sessão acompanha os curtas: Boi de salto, de Tássia Araújo , e Couraça, de Susan Kalik e Daniel Arcades. Ingressos, R$ 20 (inteira), a partir das 14h, na bilheteria, ou por ingresso.com No Complexo Cultural Planaltina, às 19h45, a mesma programação terá entrada livre.
