
Com a ocupação da Crimeia em 2014 e, mais tarde, da Ucrânia, a guerra passou a ocupar o grande tema das cinematografias russa e ucraniana. Apesar de todos os empecilhos para a produção de filmes em países conflagrados, o cinema se tornou uma janela privilegiada para vislumbrar o movimento da história em uma era de vertigem digital, segundo o cineasta e professor do curso de audiovisual da UnB, João Lanari Bo, autor de Rússia, Ucrânia e o cinema em tempos de guerra (Confraria doVento), a ser lançado no próximo sábado, na Marcondes & Co. (116 Sul), às 16 horas.
Embora o livro seja constituído por uma coletânea de artigos, publicados em sites especializados, ele tem lança uma visão de conjunto sobre os cineastas, os filmes e as questões levantadas pelos diretores russos Aleksandr Sokúrov, Andrei Tarkovski, Serguei Loznítsa ou os ucranianos Vitaly Mansky, Valentin Vassianóvith e Aleksander Dovzhenko. Antes, Lanari havia lavia publicado Cinema para russos, cinema para soviéticos (Ed. Bazar do Tempo), que cobria o período da revolução bolchevique de 1917 até 1968. E, nesta entrevista ao Correio, Lanari fala sobre o impacto da guerra no cinema, os vislumbres para a compreensão da história, a guerra e a guerra de narrativas.
Entrevista//João Lanari
Você já escreveu um livro anterior sobre o cinema russo. Como estabelece uma conexão entre os dois livros? O que te interessa no cinema russo?
A cinematografia russa é excepcional, destaque indiscutível nos estudos sobre história do cinema. O auge do cinema soviético, na década de 1920, foi uma etapa fundamental no desenvolvimento do cinema. Meu primeiro livro sobre o assunto, “Cinema para russos, Cinema para soviéticos” (Bazar do Tempo, 2019), cobre desde o período pré-revolucionário, antes de 1917, até 1968, quando as tropas soviéticas invadiram a antiga Tchecoslováquia.
O presente livro, “Rússia, Ucrânia e o Cinema em tempos de guerra”, acompanha a produção russa a partir das últimas décadas do século passado, influenciada, como não poderia deixar de ser, por acontecimentos como a perestroika, a queda do muro em Berlim em 1991, e a ascensão de Vladimir Putin. A atual guerra na Ucrânia é o marco histórico crucial do livro.
Hollywood também tratou da guerra durante o período em que os EUA esteve envolvido, principalmente na Segunda Guerra Mundial. Qual é ou quais são as diferenças de tratamento e de representação das cinematografias norte-americana, russa e ucraniana?
Hollywood tem uma longa tradição de filmes de guerra, em particular sobre a Segunda Guerra Mundial. Em geral, essas produções tinham um tratamento codificado para promoção ideológica de valores e percepções históricas, como, por exemplo, a certeza de que os Estados Unidos foram o único e indiscutível vencedor do conflito. Foi a partir da guerra do Vietnam que passou a prevalecer um tratamento mais crítico, como em “Apocalipse Now”, de Francis Coppola.
A produção russa até a morte de Stalin, em 1953, tinha também um forte viés ideológico, com filmes exaltando de forma quase mediúnica o papel de Stalin na condução da guerra. O viés continuou, mas sem a presença do líder, o heroísmo soviético passou a ser plataforma de sustentação do Partido Comunista. Algumas notáveis exceções, como “Infância de Ivan”, feito em 1962 por Andrei Tarkovski, acrescentaram complexidade psicológica ao tema.
Hoje, com o conflito da Ucrânia, a representação da guerra tornou-se uma arena de combate entre as percepções russa e ucraniana do conflito. Na Rússia de Putin, os filmes de guerra retomaram e perspectiva da celebração do heroísmo russo como projeto de consolidação da identidade nacional.
A produção ucraniana, a despeito das dificuldades de realização, por razões óbvias – como fazer um filme com o país em guerra? Logrou resultados expressivos, carregados de intensidade histórica.Se na Rússia os cineastas estão divididos quanto a apoiar ou não invasão do país vizinho, na Ucrânia a atividade cinematográfica integrou-se à resistência contra o invasor.
Na apresentação você diz que às cinematografias russa e ucraniana abrem janelas para a compreensão de um mundo digital vertiginoso. O que revelam essas janelas sobre esse mundo?
O cinema é a mídia pioneira da modernidade que se abriu em fins do século 19 chegando até a presente era de vertigem digital, estimulada, como se sabe, com a expansão da internet pelo mundo. Desde o início, o cinema firmou-se como espaço de representação dos sujeitos da história – a população, o Estado, as culturas. É, portanto, um palco privilegiado, onde se expõe um emaranhado de processos das mais variadas configurações, que aparece e reaparece diante dos nossos sentidos.
Através dos filmes, sejam produções antigas ou contemporâneas interpretando fatos passados, ou mesmo filmes feitos em cima de eventos presentes – como a guerra da Ucrânia – temos acesso a fontes diversas de interpretações desses momentos.
Assistir a filmes de diferentes épocas é, em suma, um exercício permanente de aprendizado histórico, como no caso particular das cinematografias russa e ucraniana.
Como você relaciona cinema e história no caso das cinematografias russa e ucraniana? Como a guerra afeta essas cinematografias?
A guerra – ou as guerras, desde a Segunda Guerra Mundial até a atual guerra na Ucrânia – afetaram e continuam a afetar as produções desses países. A partir dos filmes, sejam ficção ou documentários, construímos um olhar que permite um vislumbre sobre esses processos, ainda que fragmentado e limitado a momentos particulares. A pretensão de refletir e escrever sobre essa produção procura, em última análise, alinhar indicadores que contribuam para a compreensão da complexidade do que se passa hoje – que parece ver nas guerras, com toda a tragédia que acarretam, uma solução para impasses e problemas de toda ordem.
Você poderia exemplificar essa conexão entre cinema e história nas obras de alguns cineastas dos dois países?
São muitos os cineastas que trabalham essa conexão, mas destacaria dois exemplos bastante ilustrativos, O primeiro é o russo Aleksandr Sokúrov, uma espécie de herdeiro espiritual de Tarkovski, que construiu uma obra fulgurante na investigação das raízes estéticas e históricas da Rússia contemporânea. Sokúrov, a quem Putin manifestava respeito e admiração, criticou publicamente a invasão da Ucrânia e acabou se afastando do presidente russo.
Depois de várias proibições, Sokúrov conseguiu participar em um festival em Portugal com seu último filme, “Conto de Fadas”, de 2022. Na ocasião, criticou o controle da mídia em seu país, aguçado com a guerra: “Ter tanta maldade vinda da televisão estatal. Não apenas propaganda, mas verdadeira malícia. Eu nunca vi isso”.
Do lado ucraniano, um exemplo relevante é o documentarista Vitaly Mansky, que aprimorou uma linguagem primorosa de observação e entrevistas. Diretor da TV estatal russa quando Putin ganhou sua primeira eleição, no ano 2000, foi encarregado de fazer um documentário sobre este evento político. Em 2001, Vitaly exibiu na TV o filme “oficial”, aprovado pelo Presidente, mas guardou cuidadosamente o material gravado para uma futura edição, afinal completada e exibida em 2018, intitulada “Testemunhas de Putin”, talvez o melhor filme sobre o líder em Moscou – e proibido na Rússia.
Em 2014, depois da anexação da Crimeia pelas forças russas, mudou-se para Riga, capital da Letônia. Em entrevista recente, elaborou sobre seu ofício: “Quando estou fazendo um documentário, tento responder minhas próprias perguntas. E para mim, pessoalmente, a questão era, onde eu errei? Por que a Rússia acabou em uma ditadura? Por que a Rússia se permitiu perder o caminho para a democracia?”
Existe uma conexão ou ruptura das novas cinematografias russa e ucraniana com o cinema soviético clássico?
Existe uma inevitável ruptura entre o cinema soviético clássico e a produção russa e ucraniana contemporânea, dadas as turbulências da história política na Rússia, sobretudo os eventos que cercaram a queda do muro em Berlim e o fim do comunismo
Tarkovski, por exemplo, criticava a montagem dialética de Eisenstein Ao mesmo tempo, também é inevitável que uma era cinematográfica tão rica como a soviética não exerça influência sobre os cineastas atuais. O caso da Ucrânia é particular, por razões óbvias Um dos grandes do período soviético foi Aleksander Dovzhenko, que era ucraniano Ele realizou filmes esplêndidos, mas também sofreu censura e restrições na época do Stálin, entre outras razões porque era ucraniano
Atualmente, com a guerra, a cisão entre as duas cinematográficas é enorme, com os ucranianos recusando qualquer filme dirigido por russos, mesmo daqueles que criticam a invasão russa.
Serviço
Rússia, Ucrânia e o cinema em tempos de geurra
De João Lanari Bo
Lançamento no dia 11, na Marcondes & CO. (116 Sul), às 16h
Saiba Mais
Severino Francisco
Subeditor do caderno de cultura e cronistaJornalista desde 1979, atuou como repórter, editor, articulista, crítico cultural e cronista no Jornal de Brasília e no Correio Brasiliense. Lecionou jornalismo no UniCEUB. É autor, entre outros, de Da poeira a eletricidade , história da música de
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