MÚSICA

Na levada do funk brasileiro: Fernanda Abreu celebra 30 anos de álbum icônico

Fernanda Abreu celebra 30 anos de Da lata — álbum que, além de marcar a carreira da artista, foi pioneiro na música pop brasileira

Fernanda Abreu celebra atemporalidade 
de Da lata, álbum lançado em 1995 -  (crédito: Mateus Rubim)
Fernanda Abreu celebra atemporalidade de Da lata, álbum lançado em 1995 - (crédito: Mateus Rubim)

Nascida na Zona Sul do Rio de Janeiro, a cantora, compositora e bailarina Fernanda Abreu se encantou pelo funk carioca na década de 1980, antes mesmo dos MCs e das letras cantadas. Acompanhada pelo antropólogo Hermano Vianna, irmão de Herbert Vianna, ela foi ao baile funk pela primeira vez em 1989 e, em meio a cinco mil pessoas que dançavam em frente a um paredão de som, declarou: "Esse é meu lugar". Sete anos depois, surgiu o Da lata, terceiro álbum da artista, que abriu as portas para um ritmo até então invisibilizado pelas rádios. Hoje, três décadas após o lançamento, Fernanda celebra a atemporalidade do disco com projeto que reúne documentário, livro, remix e relançamento em vinil.

"Quando eu comentei com meus amigos que eu queria fazer tudo isso, eles falaram: "Você é louca, não vai conseguir". Realmente, para produzir um documentário demora pelo menos uns dois anos, e um livro uns sete meses. Mas eu sempre fui assim — quando boto algo na cabeça, eu trabalho sem parar, das 8h às 2h da manhã", revela Fernanda Abreu. A ideia do projeto surgiu na virada de 2024 para 2025, quando a artista se deu conta de que um dos álbuns mais icônicos da carreira completaria 30 anos.

"Eu não tenho costume de escutar meus discos e não ouvia o Da lata há muito tempo. Mas, nesse revéillon, botei ele para tocar para ver se valia a pena tudo isso, se ele realmente tinha algo a dizer. E eu fiquei impressionada, porque o álbum não envelheceu. As letras, a produção, a ideia, o conceito, tudo é muito atemporal", avalia a cantora. Segundo ela, o intuito foi que o projeto fosse além de apenas uma celebração de 30 anos do marco na carreira.

"Eu quis trazer algumas reflexões importantes, como, por exemplo, o que é fazer arte na era digital? Como era no tempo analógico? Como a gente criava naquela época? Como a gente ouvia música?", conta. Ao longo de 1h30, o documentário, em meio a relatos de amigos e colaboradores musicais, resgata imagens da gravação do Da lata, que durou cerca de três meses.

"Hoje, a gente trabalha muito via WhatsApp ou até mesmo com a inteligência artificial. Agora, ter parceiros talentosos para discutir, trocar ideia e contribuir é muito diferente", compara. "E eu não sou contra a tecnologia. Eu adoro. Eu estou sempre de frente ao computador e o dia inteiro no celular, assim como todo mundo. Mas eu acho que a gente tem que ficar sempre atento, porque ela tem que servir a gente, e não o contrário", ressalta.

Assim, Fernanda fez questão de idealizar um projeto com vinil e livro — itens que o público pudesse "segurar com as mãos". "Hoje em dia, tudo está na 'nuvem'. Já já não vamos ter uma estante para colocar nossas coisas, porque tudo é virtual", lamenta a carioca. "Me incomoda o fato de termos que alugar música, por exemplo. As plataformas digitais são de aluguel, pagas mensalmente. Se a gravadora tem um problema jurídico com o artista e resolve tirar a obra dele dos aplicativos, você não tem mais aquele trabalho disponível", exemplifica.

Para ela, o mundo musical passa atualmente por uma espécie de "prisão das plataformas". "Virou uma coisa meio formatada: a introdução só pode ter 15 segundos e a música só pode ter de dois minutos e meio a três minutos. Eu acho que isso atrapalha o artista a criar. Se fosse assim, você não teria um Renato Russo lançando Faroeste caboclo, uma faixa de nove minutos. Se você for criar pensando no que cabe nas plataformas e nas rádios, você acaba abrindo mão da sua liberdade criativa", opina a cantora.

Fernanda e a black music

"Antes de tudo, eu sou uma bailarina que aproveitou a música para dançar." É assim que Fernanda define como surgiu a paixão pela black music. "Quando se gosta muito de dança, você acaba indo para uma vertente da música negra mundial, africana, americana, oriental e brasileira — é aí que entra o samba e o funk, ritmos que surgiram no morro. Era quase impossível fazer música se eu não tivesse conhecimento dessas coisas", diz a artista.

"Eu sou uma pessoa branca, de classe média, que nasceu na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas, para mim, fazer música ultrapassa esse território. A arte é algo universal, livre e para todo mundo. E é isso que a torna espetacular", acredita.

Na época do lançamento do Da lata, a compositora lembra de ser rotulada como funkeira. "Quando dei entrevista ao Roda viva, as pessoas estavam metendo pau no funk. Foi aí que eu falei: "Calma. Pode ser que seja um movimento que, daqui a pouco, dê muito certo". E eu acho que deu e está dando certo. A gente tem a maior artista pop brasileira, Anitta, levando o funk para muitos lugares do mundo", aponta.

"É uma expressão musical e comportamental, é a voz da periferia e da favela. O funk sofre preconceito até hoje porque é música de preto e de pobre. Esses dias eu vi o Marcelo D2 falando: 'Alguém estava falando que a favela venceu, porque fulano tinha um colar de ouro, uma BMW e estava morando em uma mansão na Barra da Tijuca. Não, a favela não venceu. Venceu essa pessoa da favela. A favela vai vencer quando todo mundo tiver saneamento básico, educação, saúde e oportunidade'. A classe dominante brasileira tem muita dificuldade em aceitar o funk, o morro, os pretos e os pobres como feitores e criadores da nossa cultura", denuncia a compositora.

"E isso é terrível para nossa cultura, nossa sociedade e nossa educação. E ainda vem a extrema direita atrasar a gente. O Brasil tentando andar para frente, construir cada vez mais direitos para os gays, os negros, as mulheres — que sempre foram marginalizados e oprimidos — e vem essa galera", analisa Fernanda.

Projeto comemorativo reúne documentário, livro, remix e relançamento em vinil do disco
Projeto comemorativo reúne documentário, livro, remix e relançamento em vinil do disco (foto: Fotos: Walter Carvalho e Mateus Rubim)

Documentário

No documentário que revive os 30 anos de Da lata, o músico e produtor Charles Gavin define o álbum como "uma polaroid muito precisa do Rio de Janeiro e do Brasil até hoje". "O nosso país segue sendo desigual e de poucos privilegiados, contra uma população enorme que está querendo apenas sobreviver", expõe a dançarina. "A gente sempre está vendo notícias de três ou quatro trilhardários que aumentaram sua fortuna em tantos por cento ou que 67 empresários têm a mesma quantidade de dinheiro que 3 bilhões de pessoas juntas", frisa.

"Minha música fala muito disso, sobre as pessoas que não têm as mesmas chances do que as outras. Ela, sem ser panfletária ou partidária, joga na cara das pessoas a desigualdade em que a gente vive. É claro que nunca vamos ter um mundo ideal em que todo mundo terá as mesmas oportunidades, mas a gente precisa diminuir muito essa discrepância, porque isso leva à doença mental e física e à violência", afirma a artista.

"Quando eu escolho a lata como o material para representar o álbum, eu estou escolhendo algo precário. Não é a prata, o ouro ou a platina. É uma representação do que eu acho que é o povo brasileiro, que vive em meio a muita precariedade, mas também tem muita inventividade e criatividade. Nós, brasileiros, conseguimos, com o pouco que a gente tem, sermos criativos — e essa é a riqueza da cultura popular. A gente pode pegar uma frigideira e tocar, assim como a gente consegue fazer um swing de samba com apenas um prato e uma faca", pondera a carioca.

Foi exatamente com esse som, simples, mas envolvente, que Fernanda conquistou o mundo: a turnê Da lata passou pela França, Itália, Alemanha, Suíça, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Japão. "Eu me lembro que quando eu cheguei na Europa, a primeira entrevista que eu dei foi para o Le Monde, em Paris. De cara, a jornalista me perguntou como era o movimento feminista no Brasil, porque na capa do disco eu estava usando duas frigideiras de sutiã, tirando a mulher de trás do fogão e trazendo para brilhar na frente do palco", recorda.

"Eu nunca tinha pensado nisso. Olha, como nós brasileiros somos intuitivos. Eu nem tinha feito essa relação com o feminismo, de que a frigideira realmente é uma coisa que está no fogão e que normalmente é a mulher que está ali a utilizando, sempre submissa, sempre do lar. Eu peguei aquele discurso e falei: 'É isso aí. Agora eu consigo verbalizar uma coisa que eu só tive intuitivamente'", finaliza Fernanda.

 

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postado em 12/10/2025 06:01
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