
Um urso que pesava 500 quilos e o alerta do mestre (cuidador do bichano escalado para o elenco do filme Sonho, logo existo) atento aos movimentos dos atores em cena: "Vocês não devem chegar a menos de 10 metros dele". Desinteressado do risco, o ator e diretor francês Pierre Richard, aos 91 anos, estava mais apegado na mensagem do filme (atração com sessões Festival de Cinema Francês do Brasil) que não pretende perpetuar massacre e escravização dos animais. Com sabedoria anciã, Richard é o mais velho ator e diretor em atividade na França, e, como esperado, defende fundamentais ideias sobre a harmonia entre fauna e flora: "Coloquei um urso no meu filme para contar essa história. Nosso urso (do set) tem um treinador; mas eu não tive um treinador, eu tive um mestre (em ursos). O treinador envolve chicoteamento, punições. O mestre é um cara muito querido, que cuida do seu urso, que ele alimenta desde quando era filhote. Se você alimentar um animal, um animal selvagem, não importa o quão perigoso seja, seja um tigre ou um leão, se você o alimentar quando ele tiver dois meses de idade, então você será o pai dele. No set, estava com o pai daquele urso (chamado Shadow)".
Com Sonho, logo existo, exibido em sessão especial de Cannes, Pierre Richard retorna ao comando das câmeras, passados 18 anos, período que toca a idade do ator com quem divide a cena, Timi-Joy Marbot, intérprete de Michael, o inesperado amigo (diagnosticado com a hoje ultrapassada Síndrome de Asperger) do nonagenário Grégoire, recolhido da família em Gruissan (na Occitânia, em invejável área de restritos moradores, pouco mais de 5.100). Na comédia, Pierre interpreta um ermitão, desleixado com a alimentação, algo destoante com relação à ele: há 30 anos, em A chef in love, deu vida a um homem altamente centrado na gastronomia, que, na vida real, abraçou o ramo de empresário e produtor de vinhos capaz de alcançar safras com 80 mil garrafas, ao ano.
Contemporâneo de Brigitte Bardot e amigo do (hoje) controverso Gérard Depardieu, com quem estrelou fenômenos de público como A cabra (outro destacado no Festival de Cinema Francês do Brasil) e Os fugitivos, um de seus filmes refeitos para Hollywood, Pierre se afirmou na tela com a cartilha do humor pastelão, numa ascensão vertiginosa desde Loiro, alto do sapato preto (1972), num filão de arte dominada por Jacques Tati e Pierre Étaix. Ator em mais de 120 filmes, Richard sabe se reinventar, como fez recentemente, sob a direção da jovial Maiwënn, no papel de um bizarro duque da corte de Luis XV, feito por Johnny Depp em A favorita do rei.
Discípulo da École Charles Dullin de Artes Dramáticas, ele se formou no cotidiano dos cabarés parisienses, criando esquetes para o music hall. Como cantor ocasional, traz o orgulho de os filhos Olivier e Christophe Defays estarem nas mesmas artes. Pesquisador de cinesioterapia (relacionada à fisioterapia), o persistente artista, sempre maleável em cena, e que há 20 anos foi agraciado com um prêmio César Honorário, guarda tramas de vida que tangenciam a ficção. Se em 1987 foi codiretor do documentário Parlez-moi du Che (com imagens de arquivo de Che Guevara e a participação de Fidel Castro), no novo longa, ele mescla parte das tramas reais como a do pai, industrial que pôs a perder a riqueza de herança, a casos lacunares como o fato de ter sido criado em um castelo derivado da fortuna.
Entrevista // Pierre Richard, diretor e ator
Como lidaram com as cenas de interação com o urso, em Sonho, logo existo?
Eu precisava de um urso. Por que eu precisava de um urso? Porque, no meu filme, tudo o que eu digo é praticamente verdade. Principalmente, trato do cotidiano das pessoas da vila em que moro. Especialmente dos meus sonhos, porque meus sonhos são muito mais reais do que a realidade. Mas, e o urso? Por acaso, um dia, um urso escapou de um parque de vida selvagem a 40 quilômetros da minha casa. Como ele conseguiu chegar à minha propriedade? Sei que ele foi avistado, claro, pela polícia. E, infelizmente, eles o recapturaram e o colocaram de volta na jaula. Essa é a história real. E então, eu usei esse urso para falar sobre o meu amor pelas árvores. Eu falei sobre elas, mas também dos animais que são tão importantes para mim. Os animais, na minha opinião, são tão importantes no planeta Terra quanto os humanos. Os direitos deles são iguais aos nossos. Nós os escravizamos, os matamos, os massacramos.
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Mas e a aproximação com o bicho?
A princípio, combinei, com relação ao urso, 10 metros de distância. Então, um dia, o mestre (responsável pelo urso) me disse: "Você pode chegar a cinco metros." Eu até perguntei a ele: "Por que cinco metros, agora, de repente?" Ele disse: "Porque agora ele te conhece, ele te viu. Não estou dizendo que ele gosta de você, mas ele não está preocupado. Ele te viu ontem, te viu jogado ao chão (num preparo de cena). Você pode chegar a cinco metros, não mais." Então, depois disso, fizemos toda a filmagem a cinco metros de distância. E correu muito bem. Esse urso era extraordinariamente dócil com o tratador. Às vezes, eu o via e dizia para mim mesmo: "Ele pode descansar, e você também." Mas ainda tínhamos algumas reservas (de contato). É verdade que se o urso de verdade, aquele que foi resgatado da minha casa, se eu estivesse lá, naquele momento da ação de resgate, acho que eu o teria escondido para salvá-lo das grades.
No filme, há barreiras, autismo e limitações sociais como temas. Isso tende a limitar o humor? Acredita que existe tema inexplorável na comédia?
Acho que, com alguns amigos próximos, por quem tenho enorme admiração, costumavam dizer, "o que é um comediante além de um comediante?". Hoje, diria quase um pensador; mas posso estar exagerando. Você pode rir de qualquer coisa, mas depende de com quem você está, — é isso.
Interpretar personagens ingênuos, amáveis e avoados facilitou a identificação junto ao público de comédias populares?
A pessoa distraída tem uma boa qualidade. Ainda é melhor ser distraído do que ser covarde, mesquinho, agressivo, enfim, ter outros defeitos ou ser perverso. A pessoa distraída tem uma boa qualidade. Quando meu filme foi lançado, eu era completamente desconhecido. Eu nunca tinha ido além de fazer apresentações em cabarés com um amigo. E então lançado O distraído (1970), e, depois de três dias, o público aparece. Eu estrelava o filme. E Yves Robert (o diretor do meu filme anterior, Alexandre, o felizardo), enquanto caminhávamos pela rua, me disse: "Sabe, sabe qual é a vantagem do seu filme e, portanto, de quem você é? É que você é distraído." Eu disse: "E daí?"; "E daí? Todas as pessoas que se distraem facilmente, assistem ao seu filme e dizem para si mesmas, com um sorriso encantador, 'Ah, somos como ele, somos tão distraídos quanto ele.' Então, você já conquistou um público de pessoas distraídas. E todos aqueles que não são distraídos dizem para si mesmos: 'Ah, eu queria ser distraído, porque é uma falha encantadora.' Bem, é por isso que se atrai tanta gente.

Diversão e Arte
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