Literatura

A última dança: Milton Hatoum lança em Brasília novo livro

Milton Hatoum lança em Brasília o último volume da trilogia O lugar mais sombrio e participa da última edição de 2025 do Sempre um papo

Foram oito anos lapidando a história de Martim, um estudante levado pelo pai para morar em Brasília aos 16 anos, separado da mãe por um mistério que ronda mais de 600 páginas e cuja trajetória chega agora ao fim com o último romance da trilogia O lugar mais sombrio. Milton Hatoum começou a escrever a história de Martim muito antes de 2017, quando publicou o primeiro volume da série, A noite da espera. Hoje, o escritor, que é também membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), desembarca em Brasília para participar da última edição de 2025 do Sempre um papo com o lançamento de Dança de enganos, o recém-publicado último volume da trilogia.

Agora, Hatoum dá voz a Lina, a mãe da qual Martim foi separado por razões misteriosas. Quando o autor entregou o romance aos editores Emílio Freire e Luiz Schwarcz, o texto tinha a forma de uma carta. Mas a ponderação levou Hatoum a transformar a voz de Lina em memórias, e é a partir de um ponto de vista feminino, narrado em primeira pessoa, que o romance se desenvolve. Dança de enganos é o encerramento de uma saga iniciada nos anos 1960 e que perpassa a história do Brasil até a década de 1980. São, portanto, momentos turbulentos vividos pelo jovem Martim, que passa a compreender o país a partir de uma perspectiva brasiliense, questiona o autoritarismo da ditadura, se envolve na resistência e em movimentos de exílio na França.

Nessa jornada, Lina é uma lembrança, nem sempre agradável, quase sempre carregada de mágoas e faltas, mas sobre a qual o leitor projeta a partir, unicamente, do olhar de Martim. Até a voz da mãe ganhar corpo em Dança dos enganos. E não é apenas Lina que emerge no romance, mas também outras mulheres cujas memórias foram enterradas em trajetórias alheias, frequentemente masculinas. O terceiro volume da trilogia esbarra em vários Brasis. Lina fala de um tempo encerrado há mais de quatro décadas, mas ecoa na contemporaneidade. Do autoritarismo da ditadura dos anos 1960 e 1970 à construção de narrativas falsas tidas como verdadeiras há muito do cotidiano do século 21 nas memórias da mãe de Martim. Em entrevista ao Correio, o autor fala sobre o romance e a importância do passado e da linguagem na trilogia.

Entrevista // Milton Hatoum

Queria começar falando da narradora, Lina, uma mulher. Como foi esse exercício de construir um ponto de vista feminino? Qual foi o maior desafio e o que você queria imprimir nessa construção? 

No meu primeiro romance, Relato de um certo oriente, é uma voz feminina que dá forma final ao coral de vozes que evoca um passado. A narradora sem nome ouve essas vozes e escreve com seu próprio estilo, sua própria dicção. E eu voltei a essa voz feminina, mas a personagem, a narradora do Dança de enganos, é muito diferente da narradora do Relato de um certo Oriente. Essas memórias da Lina, a mãe do Martim, foram escritas na primeira versão da trilogia que antes era um romance, era um só volume, extenso. Isso só depois foi dividido em três partes. Na origem, era uma carta da mãe para o filho, uma carta da Lina para o Martim. Mas aí eu decidi transformar em memórias dela e de outros. O maior desafio é dar verossimilhança a essa personagem, ao que ela conta, quer dizer, encontrar o tom e o ritmo dessa voz que expressa os sentimentos, as descobertas, os impasses e a perplexidade da narradora. No fundo, a questão de toda a ficção é a linguagem.

O título sugere uma coreografia entre verdades e mentiras. É isso? Como essas metáforas se distribuem pelo romance?

Lina, a mãe, é envolvida numa trama ou num jogo ardiloso sem que ela saiba, sem que ela tenha plena consciência disso. Por várias razões, ela não pode saber o que está por trás desse jogo. Se eu falar mais, eu vou entregar os segredos dessa trama. Isso não seria justo para os leitores.

Podemos dizer que o livro dialoga com enganos sociais, afetivos e históricos a partir da ideia de que ele é um ponto de vista de uma personagem que ainda não tínhamos ouvido na trilogia? Que "enganos" seriam esses?

O romance tenta abordar questões sociais históricas afetivas, sentimentais, mas sempre a partir da vida das personagens. A Lina, a mãe, está presente, ela aparece no primeiro volume, A noite da espera, e some no segundo volume, Pontos de fuga. E agora reaparece com as suas memórias. Mas nesse último volume, há novas personagens, quase todas mineiras. E também Ouro Preto, o centro simbólico importante. Quer dizer, o papel simbólico e histórico de Ouro Preto é muito relevante. O leitor vai descobrir como os enganos, entre aspas, participam da dança. Aqui, na literatura e na vida, a gente não pode revelar tudo. Quer dizer, é impossível revelar tudo, há coisas ocultas, há enigmas indecifráveis e isso tudo é próprio da ficção, mas também da vida.

Qual o papel da memória nesse romance? E nessa trilogia?

Nessa trilogia e em todos os meus romances, o papel da memória é central. Como em tantos outros romances de escritores do mundo todo. O grande desafio é transformar uma memória, imaginação em linguagem ficcional. O segundo volume, Pontos de fuga, termina com essa pergunta do filho do Martim. Uma pergunta muito inspirada no poema de Jorge Luis Borges. A memória só faz sentido depois do esquecimento e a mãe tenta responder essa pergunta

Pode falar um pouco sobre como trabalhou a linguagem nesse livro

Quando o Pontos de fuga foi publicado, eu comecei a revisar a Dança de enganos e, naquela época, nem tinha título. Essa revisão durou quase cinco anos. Bom, essa é uma prova cabal da minha lentidão. Mas dessa vez foi uma lentidão, vamos dizer assim, aguçada, muito aguçada por duas por duas pestes, a covid, a pandemia, e o autoritarismo do governo passado. No início, a origem de Dança de enganos era uma longa carta da Lina ao filho. Que nem o Relato de um certo Oriente, que é uma carta da narradora para o irmão em Barcelona. Mas aí, quando eu entreguei o manuscrito, as observações dos meus editores, o Emílio Freire e o Luiz Schwarcz, me levaram a refletir sobre uma mudança na forma de narrar. Então eu passei da carta às memórias. Quer dizer, isso deu a minha  narradora uma liberdade de contar outras histórias, de narrar histórias de outras personagens

O romance traz reflexões que poderiam ser feitas hoje sobre a realidade brasileira. O que essa história acrescenta ao que o Brasil vive hoje?

Eu tentei aproximar ou estreitar a relação do passado com o presente, ou com um tempo mais recente. E eu até fico contente de saber que você e outros leitores perceberam essa relação. Quer dizer, o pesadelo que muitos brasileiros viveram durante o governo anterior é, de algum modo, consequência de mais de duas décadas de regime autoritário, de 1964 a 1985. Quer dizer, os pesadelos da história sempre voltam e alguns voltam com uma força mais destruidora. Tem uma personagem que diz mais ou menos assim, no Dança de Enganos: que ela não quer ser uma clandestina. O companheiro dela está na França, eles estão na França, e ele quer que ela o acompanhe para o Brasil. Ela é uma exilada em Paris e diz que não quer viver como clandestina no Brasil, porque, embora naquele momento, aquele ano de 1981, a ditadura já estivesse agonizando, ela reluta em vir para o Brasil porque ela diz que esses monstros agonizam, mas não morrem. E, às vezes, renascem com mais força. No segundo volume o nortista também toca nesse assunto e faz um comentário sobre esses ciclos de autoritarismo na América Latina, não só no Brasil.

Partindo da ideia de que é o ponto de vista da Lina que lemos aqui, podemos dizer que o romance dialoga com questões como desinformação, manipulação e narrativas falsas?

O romance fala de tudo isso, mas aponta também para outra coisa, quer dizer, que é o que não foi possível pensar. E às vezes, no vendaval da história ou no nosso dia-a-dia, não paramos para pensar em coisas essenciais. Há questões existenciais e materiais que se encontram no âmbito pessoal, individual, mas há também questões profundas que dizem respeito à história coletiva, ao momento presente, a nossa própria presença. Então, é preciso enxergar o que está perto e o que está longe, ver no nosso íntimo e no nosso corpo, e também saber ver o corpo social e o movimento da história.

E qual o papel da literatura em um momento de verdades instáveis e mentiras enraizadas?

O romance moderno tenta desmascarar o que a realidade aparenta ser. O romance  aprofunda as relações humanas, esses conflitos interiores das personagens, das contradições sociais. Ele transcende a aparência. É esse esse momento que você chamou de verdades instáveis e mentiras enraizadas. Na verdade, esse é o empenho da mãe, da narradora. Ela lida com isso. Com verdades deslizantes, vamos dizer, verdades, ou mentiras, ou equívocos que ela pensa que são verdades ou mesmo mentiras. O empenho dela é entender tudo isso. E, no fim, o que que ela percebe? E qual é o destino dela? Quer dizer, o dela e de outras personagens femininas que são importantes no romance, como a Aurora e a Dalinha, por exemplo. São duas mulheres, duas empregadas, uma em Santos, a outra de Ouro Preto. Quer dizer, qual é o destino. Não posso responder, se eu falar mais, vou atrapalhar o ritmo da dança e trair os leitores e as leitoras. E a gente nunca quer trair o público leitor, não é?

 


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