
Pisar em falso parece algo recorrente na trajetória de Gal (Shirley Cruz), a protagonista do mais novo filme de Anna Muylaert. Na tentativa de acertar os ponteiros com o companheiro, ela acaba trancada num banheiro, com a maquiagem borrada. De jornada áspera, a carioca até aguarda o cavalo branco, de São Jorge, e a felicidade ao lado dos filhos Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo), mas as rodas da carroça de reciclagem com que roda em São Paulo, em cotidiano de superação, vez por outra, parecem emperradas. No mundo de Gal, uma ambulante, em cadeira de rodas, pode ser roubada; uma figura paternal (o amigo Reginaldo, papel de Lourenço Mutarelli) acusa traços diabólicos e uma ida ao supermercado resulta em desconfiança e perseguição em gôndolas.
A melhor mãe do mundo esmiúça na precariedade — onde R$ 20 é empréstimo a se levar a sério e o abuso infantil se configura —, mas desemboca em sentimentos nobres que revestem a catadora, com aguerrida postura, com investidas de boxeadora. Manipulador, o pretenso marido Leandro (Seu Jorge) abraça os contornos de cafajeste, que almeja remendar o casamento com rosas vermelhas e presentes fora de hora para os filhos. Desagradável e chulo, Leandro rende queixa de Gal, em delegacia. Inspirada por trabalhadoras da cooperativa de catadores da Baixada do Glicério, Anna Muylaert aposta num filme com quê lúdico, que remete a Durval discos, que ela dirigiu há 23 anos. Sacrificada, Gal vive uma "aventura" na rua, com os filhos à margem de pequenos prazeres como um banho em praça pública e a dança em frente à vitrine, sem contar do falso "acampamento". Acolhida e afeto, ao fim, neutralizam constrangimentos para a batalhadora protagonista.
Entrevista // Anna Muylaert, cineasta
O que torna Gal singular em relação às outras mães do teu cinema?
Acho que com a mãe do Durval discos (2002), se fala quase de loucura, de psicologia. Na mãe Val (Regina Casé), do Que horas ela volta? se fala de uma chaga social. Agora, há o abandono da mãe como figura política. Daí a grande diferença. Esse filme tenta colocar a mãe no cenário sóciopolítico do Brasil. "Olha como as mães são abandonadas, pessoal! Queria muito mostrar esse filme para o Lula."
No filme, há futebol, com muito do Corinthians... Como se relaciona com o esporte?
Minha relação com o futebol é praticamente nula. Adoro ouvir o futebolzinho, ao longe, no domingo; assim, ele lembra da minha infância — com meu avô, havia futebol. Meus filhos agora gostam também. Mas eu tenho uma paixão pela Gaviões da Fiel — é um fenômeno muito comovente, muito lindo. Sempre quis filmar de dentro da Gaviões, e fiz.
Como evitou demonizar o personagem do Seu Jorge?
Todos os personagens do mundo são dignos de serem multifacetados. O personagem do Lorenço, por exemplo, o personagem é um cara bom. Mas de repente sai algo de dentro dele. Ao mesmo tempo, quando Gal parte, pesa o olhar de abandono dele. Toda a questão do machismo e da violência contra mulher fere o homem, mesmo que ele não saiba. É uma sociedade violenta e está todo mundo machucado. Um pode estar achando que está por cima ou o outro, por baixo. Mas, no fim das contas, está todo mundo quebrado. O Leandro é um cara legal, bonito, cara que canta, que tem vontade. Quando Gal fala: "pede perdão," e ele diz:" Não fui criado com isso...". Muito triste, sabe, a realidade de ser um homem, não é? Não foi criado com choro, com perdão, não foi criado com aceitação do erro?! Como é que você vai evoluir, cara? Precisamos apontar, ver, reconhecer e saber por onde mudar.
Maria, Maria baliza importante momento do filme. Como vê o universo do Milton Nascimento?
Sou brasileira, nasci com Milton. Curti, ao vivo, andei pelas ruas de Belo Horizonte, andei pelas ruas de Ouro Preto. Todo mundo tem paixão por Minas e por ele, uma força cultural, assim, com voz de anjo, não é? Mas a ideia do uso da música foi do montador do filme. Enfim, meu relacionamento é de paixão.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
DivirtaseMais
DivirtaseMais
DivirtaseMais