Por Sérgio Leo— O escritor Thelonious "Monk" Ellison resolveu ridicularizar editores e críticos que só querem, de autores negros, uma linguagem meio coloquial e enredos sobre pobreza, crime e outros estereótipos negativos. "Monk" fez um texto-pastiche com esses clichês, e, espantado, viu seu romance celebrado pela crítica. Essa é a história de Ficção americana, do diretor Cord Jefferson, filho de mãe branca e pai negro, baseado no livro Erasure, do escritor afro-americano Percival Everett. Curiosamente, ajuda a entender uma treta recente do mundo literário brasileiro.
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"Monk", no livro e no filme, esbarra numa elite branca condescendente que, acreditando contribuir para ações politicamente corretas, estigmatiza, sem perceber, comunidades discriminadas, ao esperar que a arte dessas pessoas trate apenas das consequências do preconceito e da marginalização. Aqui, no Brasil, semanas atrás, uma respeitada tradutora e professora criou polêmica ao acusar críticos e editores de dar preferência a conteúdos, como a herança da escravidão, em detrimento da forma—critério, para ela, que distingue a verdadeira literatura.
Fato histórico, a condenação dos líderes da tentativa golpista contra o governo eleito, entre outros temas, abafou a treta nas redes sociais. Mas vale lembrar: para a professora e tradutora Aurora Bernardini, autores como o premiado best seller Itamar Vieira Júnior, autor do emocionante Torto Arado, a italiana Elena Ferrante e a britânica Annie Arnaux não seriam "literatura", e sim consequência dos gostos do momento nos convescotes culturais.
Nem o consagrado teórico Umberto Eco escapou da bronca da tradutora, que torceu o nariz para autor de Obra Aberta e outras obras estéticas seminais, acusando seus bem-sucedidos livros de ficção de ter um estilo "pesado, irregular" e sem interesse".
Sujeita à ligeireza de uma entrevista, em que opiniões nem sempre acompanham exemplos convincentes, a professora deu indicações de que seu desgosto vem do fato de que elogios da crítica e leitores aos escritores citados, em geral, ligam-se a seu esforço pela valorização das vozes diferentes, que exploram visões e temas distintos das tradicionais. Bernardini agradou a quem não gosta dos autores que criticou, e ficou devendo explicação para o desprezo pelos — existentes e reconhecidos — esforços formais e narrativos dos autores que critica.
O livro de Itamar é "apaixonante, insólito e original", para ela, mas, nem assim, a entrevistada aceita que seja literatura. Essa aparente contradição fala muito mais sobre a crítica de arte atual do que sobre as obras citadas pela professora, personagem de um ambiente literário capaz de celebrar poetas que imitam vanguardistas do século passado, sem mencionar que autores hoje canônicos foram desdenhados por contemporâneos aferrados a preconceitos estéticos.
Como fica o leitor, obrigado a escolher entre acadêmicos conservadores incapazes de perceber as inovações formais da literatura contemporânea e gente bem-intencionada, mas equivocada como os supostos progressistas de Ficção Americana? Que lembre da lição de Umberto Eco em seu imperdível A Definição de Arte: o segredo da arte está em criar novas formas de expressão humana, sem desprezar os olhares originais sobre o conteúdo do mundo prático. Esqueçam os resmungões que, hipnotizados por malabarismos formais ou por agendas alheias à arte, cospem no universo onde mora o prazer do texto literário.
Sergio Leo é jornalista, escritor e míope.
