ENTREVISTA

"Brasil tem o poder da negociação", diz especialista em relações internacionais

Ao fazer a análise do cenário global, o professor, pesquisador da Helsinki Geoeconomics Society e co-chair do Comitê de Pesquisa em estudos da Ásia e do Pacífico da International Political Science Association ( IPSA) fala das oportunidades para o país

Coelho: "Falta ao Brasil uma estratégia de longo prazo que vá além de ciclos de governo. O país precisa transformar sua política externa em uma política de Estado" -  (crédito: acervo pessal)
Coelho: "Falta ao Brasil uma estratégia de longo prazo que vá além de ciclos de governo. O país precisa transformar sua política externa em uma política de Estado" - (crédito: acervo pessal)

O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, embarca nesta semana a Washington, para a primeira conversa oficial com o governodos Estados Unidos desde o telefonema do presidente Donald Trump a Luiz Inácio Lula da Silva, há uma semana. Ele vai se reunir como chefe do departamento de Estado, Marco Rubio, na tentativa de destravaro impasse em torno da taxação de 50% sobre produtos brasileiros que entram nos Estados Unidos. Ele embarca com a autoestima elevada, uma vez que a posição dos pinos colocados no tabuleiro geopolítico global põe o Brasil em uma posição vantajosa, na análise de especialistas.

A mais recente análise, publicada na última edição da revista The Economist, vê o Brasil como vencedor na guerra tarifária entre Trump e a China. Nesta entrevista ao Correio Braziliense, o especialista em relações internacionais, Alexandre Coelho, adverte, no entanto, que não será uma conversa fácil. Na semana passada, em palestra no 26º Congresso do Instituto Brasileiro de Governança Corporativo (Ibgc), ele encerrou a sua fala citando a frase “Ser inimigo dos Estados Unidos é perigoso, mas ser amigo é fatal”, do diplomata Henry Kissinger, ao alertar sobre os perigos da “química” mencionada por Trumpsobre Lula. Nesta entrevista, ele explica o porquê da cautela.

“O Brasil tem vantagem em áreas específicas, mas não controla o jogo. O equilíbrio inteligente entre os dois polos é o que pode manter o país na mesa de negociação”, comenta Coelho, citando ainda o perfil “volátil” de Trump e a oposição deRubio ao governo brasileiro.

O senhor encerrou sua palestra nocongresso do Ibgc citando a frase doKissinger sobre o perigo de ser amigodos EUA. Considerando a figura deDonald Trump, e seu lema “América emPrimeiro Lugar”, quais são os riscos?

A frase reflete uma realidade recorrente: os Estados Unidos agem de acordo comseus próprios interesses estratégicos, mesmo que isso implique prejuízos a aliados.Sob Donald Trump, essa lógica se intensifica, pois a política externa volta a ser tratada de forma transacional, baseada emganhos imediatos e não em compromissos duradouros. Em um cenário assim, atéparceiros históricos podem ser tratados como adversários quando deixam de serviraos objetivos de Washington.Um exemplo claro é a fissura crescente naaliança transatlântica entre os Estados Unidose a Europa. Divergências sobre financiamento da OTAN, políticas comerciais e sanções àRússia evidenciam que o elo de confiança quesustentou o Ocidente desde o pós-guerra está enfraquecido. Essa tensão mostra que nem mesmo os aliados mais antigos estão imunes à volatilidade da política americana. O risco, portanto, está na dependência excessiva. A amizade com os Estados Unidos pode ser benéfica enquanto houver convergência de interesses, mas torna-se perigosa quando há mudança de prioridades. O desafio para países como o Brasil é dialogar com Washington sem subordinação, buscando cooperação pragmática, mas sempre preservando autonomia e capacidade de decisão própria.

Que cuidados o Brasil deve ter nasnegociações do tarifaço, que se iniciamagora, de maneira mais direta e objetiva?

Não é simples estabelecer critérios paraum acordo dessa natureza. Trata-se de umtema complexo nas relações entre Brasil eEstados Unidos, pois envolve não apenas umlíder volátil como Donald Trump, mas também um secretário de Estado, Marco Rubio,crítico a governos de perfil progressista, como o atual brasileiro. Essa combinação traz uma dimensão ideológica às negociações e pode dificultar a construção de confiança política. Por isso, o Brasil precisa manter uma postura técnica e pragmática, conduzindo o diálogo com serenidade e foco em resultados concretos, evitando qualquer personalização ou disputa de narrativas.O principal cuidado é compreender qu a política comercial norte-americana, neste momento, é guiada por interesses eleitorais e por uma necessidade de apresentar vitórias políticas ao eleitorado interno. Trump usa acordos internacionais como instrumentos de visibilidade, buscando mostrá-los como conquistas que fortalecem a economia e o trabalhador americano. Assim, o Brasil deve formular uma proposta que também gere benefícios visíveis aos Estados Unidos — como ampliação de importações em setores que criem empregos em estados-chave —, mas que assegure reciprocidade. Toda concessão deve vir acompanhada de contrapartidas, como maior acesso ao mercado americano para carnes, etanol e café, garantindo que o acordo seja equilibrado e sustentável. Por fim, o Brasil deve conduzir as negociações com total autonomia, sem depender de alianças externas, num contexto global marcado por divisões políticas e pela ausência de coordenação regional. Cada decisão precisa ser tomada com base no interesse nacional, tentando assegurar previsibilidade jurídica e estabilidade comercial.

Sabendo do interesse americano no que se refere às big techs e aos minerais críticos, o que o Brasil pode colocar na mesa de negociação?

O Brasil pode negociar a partir da força de dois ativos: seus recursos naturais e seu mercado digital. No caso dos minerais críticos — como terras raras, nióbio e lítio —, o país deve condicionar qualquer acordo à instalação de plantas de refino e de transformação no próprio território, para gerar emprego e tecnologia local. No setor digital, o Brasil pode propor cooperação tecnológica, mas com cláusulas claras de proteção de dados, transferência de conhecimento e uso soberano das informações. O país precisa mostrar que quer parcerias, não dependências. A China também busca parcerias com o Brasil para investimentos nas terras raras.

Como o senhor vê essa disputa e quais os cuidados, em termos de soberania, o Brasil deve tomar?

A disputa entre Estados Unidos e China pelas terras raras é parte central da nova economia global. O Brasil tem grandes reservas e, portanto, um poder de negociação que poucos países possuem. O cuidado essencial é não repetir o modelo de exploração primária. É preciso garantir que o país não exporte apenas o minério bruto, mas desenvolva senão toda, parte da cadeia produtiva — da extração ao refino, no mínimo, com potencial para transferência tecnológica. Outro ponto é diversificar as parcerias. O Brasil deve trabalhar com diferentes países e blocos — Europa, Japão, Coreia, Índia — para não ficar refém de nenhum dos dois grandes polos de poder. Assim, protege sua soberania e maximiza seus ganhos.

É sabido que a “química” citada por Trump em relação a Lula tem forte relação com a pressão de vários importadores americanos — carne e café, por exemplo. No balanço, até o momento, é possível dizer que os EUA perderam mais que o Brasil, ou seja, o Brasil tem as cartas nas mãos?

O Brasil se beneficiou das tensões entre Estados Unidos e China, especialmente no setor agrícola. O país ampliou suas exportações de soja, por exemplo, tornando-se fornecedor prioritário para o mercado chinês. Nesse sentido, o balanço poder ser favorável ao Brasil. Mas é importante lembrar que esse poder de barganha é setorial. No campo tecnológico e financeiro, os Estados Unidos ainda exercem uma influência enorme. Portanto, o Brasil tem vantagem em áreas específicas, mas não controla o jogo. O equilíbrio inteligente entre os dois polos é o que pode manter o país na mesa de negociação.

O que podemos esperar de Marco Rubio como o principal negociador pelo lado dos Estados Unidos?

Marco Rubio é um dos nomes mais ideológicos da política americana atual. Sua trajetória é marcada por uma postura dura em temas de segurança e por um discurso crítico a governos de perfil progressista, especialmente na América Latina. Essa característica tende a tornar suas posições iniciais mais rígidas, sobretudo em questões que envolvam China e tecnologia. Apesar desse viés, Rubio deverá seguir as orientações diretas do presidente Trump, cujo objetivo é celebrar um acordo com o Brasil que possa ser apresentado internamente como uma vitória política e econômica. Portanto, ainda que adote um tom firme e procure limitar a aproximação brasileira com Pequim, Rubio tem interesse em chegar a um entendimento — desde que possa mostrar aos eleitores americanos que obteve ganhos concretos para os Estados Unidos. Para o Brasil, isso exige uma postura pragmática e equilibrada. O país deve reafirmar que sua cooperação com a China tem caráter essencialmente econômico e não político, evitando confrontos desnecessários. Ao mesmo tempo, precisa demonstrar disposição em ampliar o comércio e os investimentos com os Estados Unidos, sem renunciar à autonomia nas suas escolhas externas. O êxito do diálogo com Rubio dependerá dessa combinação de firmeza diplomática e pragmatismo.

Como o senhor enxerga o potencial do Brasil para se tornar um ator global mais influente e quais mudanças estratégicas são necessárias?

Falta ao Brasil uma estratégia de longo prazo que vá além de ciclos de governo. O país precisa transformar sua política externa em uma política de Estado, baseada em continuidade, visão estratégica e investimento em capital humano e tecnológico. Somente assim poderá sustentar uma presença global consistente e menos vulnerável às mudanças de orientação política interna. O Brasil tem condições de ampliar sua influência internacional ao atuar de forma propositiva nas agendas que definem o futuro do sistema internacional — clima, segurança alimentar e energética. Em vez de reagir a crises, deve ocupar o papel de mediador confiável e de articulador de consensos, oferecendo soluções práticas e sustentáveis. É nessa capacidade de construir pontes e propor respostas globais que reside o verdadeiro poder de influência do país no século XXI.

O senhor citou, em sua palestra, a expansão do yuan no mundo e o propósito chinês de enfraquecer o dólar como moeda padrão. O Brics também tem defendido as transações em moeda local. Quando o senhor vislumbra que essa mudança ocorra e que impacto terá na economia global?

Essa mudança será gradual, não imediata. O dólar continuará sendo a principal moeda internacional por muitos anos, mas a tendência é de diversificação. O aumento das transações em moedas locais, como o real e o yuan, reduz custos e dependência cambial, especialmente entre países do Sul Global. Isso também diminui o poder de sanção dos Estados Unidos, que usam o sistema financeiro internacional como instrumento de pressão política. No longo prazo, entendo que veremos um sistema mais fragmentado, com várias moedas convivendo, sem que nenhuma substitua completamente o dólar.

Trump anunciou o fim da Guerra em Gaza. O senhor acredita?

Não se trata propriamente do fim da guerra, mas da tentativa de implantação da primeira fase de um acordo ainda em construção. Neste momento, o plano está centrado no cessar-fogo e na troca de reféns israelenses por prisioneiros palestinos, prevista para ocorrer nesta segunda-feira. É um passo importante, mas extremamente delicado: qualquer erro de cálculo — um ataque isolado ou um bombardeio — pode colocar todo o processo a perder. Ainda assim, é uma das melhores notícias em muito tempo, talvez desde os Acordos de Oslo. O avanço recente só foi possível graças à atuação conjunta de diversos países árabes e potências europeias, como Alemanha, França e Reino Unido, com o Egito e o Qatar atuando como mediadores e fiadores, ao lado dos Estados Unidos. O Brasil também manifestou apoio formal ao acordo, reforçando sua posição de defensor do diálogo multilateral e da solução a política comercial norte-americana, neste momento, é guiada por interesses eleitorais e por uma necessidade de apresentar vitórias políticas ao eleitorado interno. Trump usa acordos internacionais como instrumentos de visibilidade, buscando mostrá-los como conquistas que fortalecem a economia e o trabalhador americano. Assim, o Brasil deve formular uma proposta que também gere benefícios visíveis aos Estados Unidos — como ampliação de importações em setores que criem empregos em estados-chave —, mas que assegure reciprocidade. Toda concessão deve vir acompanhada de contrapartidas, como maior acesso ao mercado americano para carnes, etanol e café, garantindo que o acordo seja equilibrado e sustentável. Por fim, o Brasil deve conduzir as negociações com total autonomia, sem depender de alianças externas, num contexto global marcado por divisões políticas e pela ausência de coordenação regional. Cada decisão precisa ser tomada com base no interesse nacional, tentando assegurar previsibilidade jurídica e estabilidade comercial.

Sabendo do interesse americano no que se refere às big techs e aos minerais críticos, o que o Brasil pode colocar na mesa de negociação?

O Brasil pode negociar a partir da força de dois ativos: seus recursos naturais e seu mercado digital. No caso dos minerais críticos — como terras raras, nióbio e lítio —, o país deve condicionar qualquer acordo à instalação de plantas de refino e de transformação no próprio território, para gerar emprego e tecnologia local. No setor digital, o Brasil pode propor cooperação tecnológica, mas com cláusulas claras de proteção de dados, transferência de conhecimento e uso soberano das informações. O país precisa mostrar que quer parcerias, não dependências.

A China também busca parcerias com o Brasil para investimentos nas terras raras. Como o senhor vê essa disputa e quais os cuidados, em termos de soberania, o Brasil deve tomar?

A disputa entre Estados Unidos e China pelas terras raras é parte central da nova economia global. O Brasil tem grandes reservas e, portanto, um poder de negociação que poucos países possuem. O cuidado essencial é não repetir o modelo de exploração primária. É preciso garantir que o país não exporte apenas o minério bruto, mas desenvolva senão toda, parte da cadeia produtiva — da extração ao refino, no mínimo, com potencial para transferência tecnológica. Outro ponto é diversificar as parcerias. O Brasil deve trabalhar com diferentes países e blocos — Europa, Japão, Coreia, Índia — para não ficar refém de nenhum dos dois grandes polos de poder. Assim, protege sua soberania e maximiza seus ganhos. É sabido que a “química” citada por Trump em relação a Lula tem forte relação com a pressão de vários importadores americanos — carne e café, por exemplo. No balanço, até o pacífica de conflitos. Apesar disso, é preciso manter cautela. O Hamas ainda não deu sinais claros de que aceitará se desarmar, e o governo de Benjamin Netanyahu não reconheceu de forma expressa a criação de um Estado palestino, condicionando essa possibilidade a exigências complexas. Portanto, mais do que acreditar ou duvidar, o momento é de acompanhar com atenção. O cessar-fogo é um avanço, mas a paz — entendida como estabilidade política e reconhecimento mútuo — ainda depende de compromissos que estão longe de se consolidar.

E em relação aos demais conflitos vividos no mundo, em especial a Ucrânia, quais são as suas perspectivas?

A guerra na Ucrânia está num impasse. Nenhum dos lados tem força suficiente para alcançar uma vitória militar definitiva, e ambos enfrentam esgotamento econômico. O cenário mais provável é de um conflito prolongado, com avanços pontuais e eventuais acordos de cessar-fogo temporários. A Europa está dividida sobre como lidar com o desgaste, e os Estados Unidos já mostram sinais de fadiga em seu apoio. A paz ainda é distante, e o risco de congelamento do conflito — com fronteiras indefinidas — é cada vez maior.

O senhor também abriu a sua palestra falando que não se trata de que haja “uma sensação de instabilidade, mas os números mostram que, de fato, estamos vivendo um momento de instabilidade”. O que dizem os números?

Os dados mostram uma realidade preocupante. O número de guerras e de mortes por conflitos armados atingiu o maior patamar em mais de duas décadas. Além disso, o comércio internacional vive um processo de fragmentação: aumento de tarifas, sanções, controles de exportação e guerras tecnológicas. A confiança nas instituições multilaterais também está em queda. Tudo isso indica que não estamos diante de uma percepção subjetiva de instabilidade. Os números comprovam que o mundo vive, de fato, o período mais tenso desde o fim da Guerra Fria.

 

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Por Edla Lula
postado em 13/10/2025 04:21 / atualizado em 13/10/2025 14:42
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