
A indústria de destilados é a mais afetada com a falsificação de bebidas alcoólicas. A crise gerada pela intoxicação por metanol — com confirmação de oito mortes e casos graves provocados pela adulteração — escancaram as demandas do setor e a necessidade de debater soluções rápidas para buscar meios de garantir a rastreabilidade e segurança do consumo no país. Em entrevista ao Correio, o presidente da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), José Eduardo Cidade, afirma que o melhor recurso para enfrentar o caos é a integração de sistemas já existentes.
Segundo um estudo conduzido pela Euromonitor International para ABBD, as bebidas falsificadas fizeram com que o Brasil deixasse de arrecadar R$ 28 bilhões em impostos no ano passado. A perda fiscal na pesquisa foi calculada levando em conta impostos e taxas sobre produção, importação e impostos sobre venda. Cidade ressalta que o problema é antigo. "O mercado ilegal não é de agora", aponta.
Para a ABBD, a crise de intoxicação por metanol foi uma surpresa?
Essa questão do mercado ilegal não é de agora. A gente precisa separar, dentro do mercado ilegal, todas as ilicitudes que existem. Há números equivocados nesse sistema. Isso está claro. A falsificação já vem há bastante tempo. No ano passado, fizemos um evento no Correio, em que a gente tratava disso. Antes da crise, fizemos uma atualização dos números. O total de ilicitudes dentro do segmento de bebidas alcoólicas é de 28%. Dentro destes 28% tem contrabando e descaminho, tem produto substituto, produto não registrado — e também a falsificação. Desse total de 28%, 4,7% é de falsificação de bebidas. É um tema que, sim, existe há bastante tempo. Estamos monitorando e fazendo uma série de integrações com agentes da segurança e de fiscalização para combater o que põe em risco a vida das pessoas.
Como deve ser feita a fiscalização?
Nas ações integradas de fronteira, houve um decréscimo dessa ilicitude, que é o contrabando e descaminho nas regiões fronteiriças. Isso ocorre em função das ações integradas. O que a gente vem conversando com esses agentes públicos é que é preciso deslocar essa ação integrada na fronteira — que os resultados mostram que são positivas — para o interior do país. Tem que pegar o falsificador nesses lugares também.
Falta investimento?
Não houve um investimento adequado naquilo que o setor vem apontando há bastante tempo. Sempre foi alertado para uma falsificação ocorrendo no país, e que não recebeu a devida atenção. Além disso, teve, sim, uma série de equívocos de comunicação entre os agentes públicos e, consequentemente, uma falta de integração. Isso transformou a crise muito maior do que ela é.
O que foi debatido até agora?
Começaram a surgir soluções milagrosas para resolver o problema da falsificação. Querem criar novas regras para o setor produtivo, para o setor formal, para o setor legal. A solução é intensificar a fiscalização sobre essa ilicitude que acontece diariamente. Quando se fala de ilicitude, é lógico que a falsificação preocupa, porque ela põe em risco a vida das pessoas. As demais ilicitudes são tributárias — que são necessárias outras regras. Tem ilicitude de produtores que não têm registro junto ao órgão competente, principalmente os pequenos produtores. Ele está cometendo uma ilicitude? Sim, mas isso não quer dizer que o produto dele seja falsificado. Então, como se faz um trabalho de fiscalização para ajudar esse pequeno produtor a se regularizar? É um ponto. A indústria formal respeita a regra, respeita a legislação e faz todo o procedimento para entregar um produto de qualidade ao consumidor.
E quanto aos outros problemas?
Todos nós sabemos que tem, sim, uma questão de sonegação tributária no país. Muita gente vende sem nota e não é só por sonegação de imposto. Tem também o risco de ter um produto sem qualidade. Então, aqui não dá para misturar essas ilicitudes e dizer, como estão afirmando por aí, que 33% da bebida destilada no Brasil é falsificada. Não é isso. É um mercado ilegal que tem um guarda-chuva enorme na cidade. Colocam esse número equivocado lá em cima para vender soluções.
É preciso integração?
Tem formas de se fazer o controle sobre a sonegação, o contrabando, o descaminho, sobre produtos sem registro. A falsificação é o ponto. Precisamos ter o comprometimento de toda a cadeia. Não é só da parte do produtor.
O STF retoma, hoje, o julgamento que trata do restabelecimento do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) no país — extinto em 2016 pela Receita Federal. O que a entidade pensa sobre a volta dessa instituição?
Acredito que a volta do Sicobe não vai resolver o problema. Porque ele foi implantado para resolver questões tributárias. Temos outras coisas que tem que se analisar. O próprio governo disse que o sistema não é eficiente. O Sicobe não vai dizer se o produto é apto ou não para consumo. Ele vai dizer a quantidade de litros que foi engarrafado. E tem uma outra questão: esse sistema, quando implantado a época, abrangia bebidas açucaradas, refrigerantes, cerveja, água mineral. O resto ficava de fora do controle do Sicobe. Um ou outro grande player de destilado, de cachaça, entrava.
E o caso dos importados?
O produto importado, quando chega no Brasil, tem uma regra para entrar. A Receita Federal é muito rigorosa com relação a isso. Ele não entra se não passar no crivo deles. Nas bebidas importadas, destiladas, têm um selo de IPI feito pela Casa da Moeda a partir de um pedido feito pelas indústrias para a Receita Federal. Então, não é o Sicobe que vai resolver isso também. Mas, agora, diante dessa crise, estão querendo reimplantar. A Receita, o Ministério da Agricultura, a Anvisa, todos esses órgãos de regulação controlam dentro do país. O que precisamos é de uma integração, e não de mais um sistema.
A solução, então, seria a união?
Sim. A integração dos sistemas já existentes para que se possa produzir bebida alcoólica no país. O nosso problema é a falsificação — e ela não é de agora. E o que aconteceu é que teve, sim, a questão da venda de metanol que era para combustível. O álcool combustível já se usa há muito tempo para fazer bebida falsificada. Para o falsificador, era barato. O problema foi a contaminação com o metanol, esse é outro problema. Por isso, a gente sente muito e se solidariza com todas as famílias. Mas o problema não é da indústria formal.
Por onde começar?
Quando falamos das bebidas importadas, principalmente uísque, temos a garrafa de utilização única, porque 97% do uísque consumido no Brasil é importado e ele vem engarrafado da origem. Quem toma a bebida faz o que com a garrafa vazia? Joga no lixo comum. Esse recipiente vai para o mercado paralelo porque um tem valor. Se você pesquisasse pesquisar na internet, você vai achar essa garrafa (e com rótulo). Então, a primeira coisa que tem que fazer é educar o consumidor.
E no caso dos estabelecimentos?
Um restaurante tem um consumo maior de garrafas de uísque no mês. Essa garrafa tem que ser destruída. Ela é consumo único, é diferente. Por exemplo, se você pegar uma cachaça, que é a garrafa retornável e pegar algumas vodcas, a garrafa retornável, principalmente as produzidas no Brasil, que vem importada todo uso único. Como é que eu convenço o dono do bar, do restaurante, das casas de eventos de que aquele volume maior de garrafas não é descartada de forma adequada? Ele sabe que isso tem valor no mercado... Tem aquelas que são retornáveis, mas essas que são de uso único, tem, sim, que eliminar do mercado. E aí entra o trabalho dos agentes públicos, que não podem deixar que tenha disponibilidade desse produto na internet.
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Como tem sido o diálogo com as autoridades e com a Câmara dos Deputados diante dessa crise?
A conversa no Legislativo tem sido muito boa. Legislativo tem entendido que gente precisa criminalizar a falsificação, pois a pena, atualmente, é muito baixa. Para a falsificação, a fiança em R$ 1.000. Rem um projeto de lei colocado agora em regime de urgência na Câmara para fazer essa caracterização como crime hediondo. A ABBD conversou com o relator e ele entendeu tudo isso. Ele também compreendeu que a caracterização disso como um crime mais grave não pode ser misturado com outras eventuais soluções que venham a ser encontradas.
A entidade é a favor da Polícia Federal na investigação sobre a intoxicação por metanol?
Não é uma questão de ser favorável a uma polícia ou outra. Quem tem poder de polícia é a polícia, quer seja ela federal ou estadual. Em uma das palestras que fiz sobre esse tema, eu disse que o treinamento que a gente faz para o agente de fiscalização, ele não é um treinamento para polícia, ele é um treinamento restrito para o agente de fiscalização. Temos a Polícia Civil, a Polícia Militar, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Estadual e Federal, a Receita Estadual e Federal, a Vigilância Sanitária Federal, Estadual e Municipal e Procons. É preciso uma ação integrada com a polícia, porque não basta eu pegar o cidadão que está vendendo aquela garrafa. Queremos pegar quem é que está entregando para ele esse produto. Cada órgão tem um tipo de sistema de controle e rastreabilidade. Por que não unifica eles? Ou compartilha dados entre um sistema e outro? Eles têm que conversar e agir em conjunto para resolver a crise.
O senhor acredita que a crise está longe do fim?
O que está dando para entender nesse processo todo é que esse grande volume que veio ao mercado foi uma questão de um problema em São Paulo e que pelas ações que aconteceram lá, parece que já identificaram. A tendência é que isso agora diminua, né? Se realmente a grande discussão que se faz aqui e aí é que eu não vou entrar no mérito se foi por isso A, B ou C.
É preciso falar sobre o consumo responsável do álcool, certo?
É necessário ter essa conversa. Nós vamos fazer uma campanha sobre consumo responsável. Tem que ensinar o consumidor a beber com responsabilidade, sobre qual é a dose de bebida que ele pode tomar por dia para consumo, sobre a dose padrão. É preciso tratar o álcool como álcool, independente de qual tipo da bebida alcoólica.
Quais são outras demandas importantes para a ABBD?
A entidade tem alguns pilares instituídos na época pelas associadas. Temos algumas pautas variadas, como o consumo responsável, publicidade e a tributação. A Reforma Tributária está aí para a gente tentar minimizar o impacto dentro do segmento de bebidas. Até 2015, nós tínhamos um critério de tributação no Brasil. Naquele ano, com as mudanças aplicadas, ficou desproporcional. As bebidas alcoólicas destiladas pagam muito mais do que a cerveja. Falando de IPI, até 2015, todos pagavam 15% de IPI. Mas um decreto mudou tudo isso. Cerveja de 15% diminuiu para 6%. Cachaça de 15% passou para 30%; e demais bebidas destiladas de 15% passou para 35%. Então, evidente que essa é uma pauta da ABBD desde que ela foi criada.

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