
O financiamento climático global sofre pelas desigualdades entre o Norte e o Sul do planeta. Embora tenha como meta apoiar países em desenvolvimento, boa parte dos recursos chega em forma de empréstimos. "Muitos acabam pagando mais em juros do que receberam inicialmente", alerta Tatiana Oliveira, especialista em clima e líder de estratégia internacional do WWF-Brasil, ao Correio. Ela avalia como esse modelo perpetua um ciclo de endividamento que limita investimentos em adaptação e conservação ambiental.
Há uma lacuna importante na distribuição dos recursos: cerca de 60% do financiamento climático mundial é voltado à mitigação das emissões, enquanto apenas 30% se destina à adaptação e às ações de perdas e danos. A especialista fala também sobre a dificuldade de compromisso dos países com financiamento na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) e os impasses que travam a agenda.
O Banco Mundial aprovou sua atuação como administrador do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), uma das grandes apostas do Brasil na proteção das florestas tropicais. Qual é a importância dessa iniciativa e por que ela representa uma inovação no financiamento climático?
O TFFF é um mecanismo de financiamento inovador porque combina diferentes fontes de recursos — doações de países e fundos soberanos, por exemplo — com instrumentos de mercado, como títulos e debêntures. Essa estrutura permite atrair o que chamamos de recursos novos e adicionais, ou seja, dinheiro que não estava previsto originalmente na arquitetura da Convenção do Clima da ONU (UNFCCC) e que não concorre com outros compromissos internacionais já existentes. Esses recursos vêm realmente para somar, especialmente para países do Sul Global, que precisam de apoio financeiro para implementar políticas de conservação e transição ecológica.
Quais são os principais diferenciais do TFFF em relação a outros modelos de financiamento climático?
O TFFF tem três pontos muito positivos. Primeiro, ele possibilita que os governos administrem diretamente os recursos arrecadados, conforme suas prioridades e políticas nacionais de combate ao desmatamento e de conservação de florestas nativas. Segundo, ele foi desenhado para financiar a floresta em pé — aquelas áreas que, por não estarem sob ameaça imediata de degradação, acabam ficando de fora de outros mecanismos de financiamento. E o terceiro diferencial é a criação de um benchmark importante: até 20% dos recursos do TFFF devem ser destinados a povos indígenas e comunidades tradicionais. Isso estabelece uma referência inédita para o financiamento direto a essas populações, reconhecendo seu papel essencial na preservação dos ecossistemas.
Quais são as expectativas em relação à sua implementação?
A expectativa é que o TFFF se torne um catalisador da proteção e conservação das florestas. O objetivo é atingir a meta mínima de US$ 25 bilhões para iniciar as operações e consolidar o fundo até a COP30, marco importante para o Brasil. Por ser um mecanismo novo, a implementação exigirá ajustes e aprendizado ao longo do tempo. Mesmo assim, o potencial transformador é grande, pois o fundo pode comprovar que investir na floresta e nas pessoas que nela vivem gera resultados positivos e sustentáveis.
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Pensando na COP30, que áreas de financiamento o governo brasileiro deve priorizar para minimizar os impactos ambientais e promover a resiliência climática?
Há, atualmente, uma lacuna importante no equilíbrio entre mitigação e adaptação. Aproximadamente 60% dos recursos globais de financiamento climático são destinados à mitigação — ações voltadas à redução de emissões e à descarbonização —, enquanto adaptação e perdas e danos ficam com apenas 30%. Mas estamos vivendo um momento de intensificação dos eventos climáticos extremos e de aumento da temperatura média global, o que torna urgente ampliar o financiamento para adaptação e perdas e danos. A sociedade civil, junto com países do Sul Global, defende triplicar os recursos destinados à adaptação climática, renovando a antiga meta de duplicar esse volume. Também é essencial garantir novos aportes ao fundo de perdas e danos, para que as ações de resposta sejam realmente efetivas.
Quais são os principais gargalos que ainda dificultam o acesso dos países em desenvolvimento aos recursos internacionais de mitigação e adaptação?
O principal problema da estrutura atual do financiamento climático é a desigualdade, que aprofunda as assimetrias entre Norte e Sul Global. Entre 60% e 80% dos recursos chegam na forma de empréstimos, fazendo com que os países se endividem ao buscar financiar suas metas ambientais. O dinheiro do clima não pode gerar novas dívidas. O impacto é ainda maior porque, em vários casos, os juros cobrados superam o valor originalmente recebido. Outros fatores encarecem o acesso: o custo do capital, mais alto para economias emergentes; o risco cambial, que aumenta a dívida em moeda estrangeira; e as notas de crédito atribuídas pelas agências de rating, que influenciam diretamente o preço dos empréstimos. Tudo isso ocorre em um contexto de novo ciclo de endividamento global, já apontado pelo FMI, afetando sobretudo os países do Sul Global e limitando sua capacidade de investir em adaptação e conservação ambiental.
Na sua avaliação, qual seria o modelo ideal de financiamento climático?
Para temas como adaptação e perdas e danos, o modelo ideal é o financiamento a fundo perdido, ou seja, recursos públicos que não precisam ser devolvidos. Esse tipo de aporte é o que realmente permite que políticas socioambientais ganhem escala e efetividade. Infelizmente, temos visto uma retração dos aportes públicos, tanto de governos quanto de bancos multilaterais, e um avanço do setor privado. O ideal seria que ambos caminhassem juntos, o público garantindo previsibilidade e justiça climática, e o privado trazendo escala e inovação.
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O setor privado tem ampliado sua atuação por meio de investimentos ESG. O Brasil criou recentemente sua taxonomia verde. Qual é o papel desse instrumento?
A taxonomia é um passo essencial para regular o que pode ser considerado um investimento sustentável. Ela dá segurança jurídica e transparência, tanto para o mercado quanto para a sociedade, e permite distinguir o que é realmente "verde" do que é apenas marketing. O desafio agora é harmonizar as diferentes taxonomias nacionais, porque algo considerado sustentável no Brasil também precisa ser reconhecido como tal em outros países. É o que o governo chama de "super taxonomia", uma tentativa de criar critérios mínimos globais que evitem distorções no comércio e nos investimentos internacionais.
E quais são os principais desafios para a implementação dessas taxonomias no Brasil?
Dois pontos são fundamentais. O primeiro é garantir a participação social na elaboração das taxonomias. Elas não podem ser feitas apenas por técnicos e especialistas, é preciso incluir povos e comunidades tradicionais, organizações da sociedade civil e representantes das economias locais. O segundo é adaptar o desenho da taxonomia à realidade brasileira. Muitos países tendem a replicar modelos estrangeiros, mas é essencial que o Brasil desenvolva seus próprios parâmetros, levando em conta suas particularidades econômicas, regionais e sociais. Só com esse diálogo plural é possível criar instrumentos que representem de fato os interesses nacionais e direcionem investimentos para os setores que mais precisam.
A recente decisão do Ibama de liberar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas pode comprometer a imagem do Brasil na captação de recursos para descarbonização?
Não. A agenda de financiamento climático e a presidência brasileira na COP30 são processos paralelos. É importante destacar que a presidência da conferência não define sozinha a agenda, ela conduz o diálogo, mas as decisões são coletivas, tomadas pelos 196 países que compõem o regime climático internacional. Portanto, a credibilidade do Brasil nesse campo não está em risco. O que pode ocorrer são repercussões políticas no âmbito interno, mas em termos de negociação multilateral, o país continua sendo um ator relevante e confiável.
O Cerrado é hoje um dos biomas mais ameaçados e ainda pouco contemplado em políticas de financiamento climático. O que esperar da sua presença na COP30?
O Cerrado precisa, sem dúvida, ter mais visibilidade nas discussões internacionais. Embora a COP não ofereça respostas diretas a questões nacionais ou regionais, ela é um espaço importante para construir diretrizes e consensos que depois influenciam políticas domésticas. A Amazônia tende a ter mais destaque por seu papel na regulação climática global, mas o Cerrado é fundamental para a segurança hídrica, para a biodiversidade e para o equilíbrio ecológico do país.
Na última COP, o lobby dos combustíveis fósseis foi um dos mais influentes. Como garantir que essa pressão não enfraqueça novamente os compromissos climáticos?
A transparência é a chave. É fundamental saber quem participa das negociações, como participa e com quais interesses. A ONU costuma publicar relatórios detalhando a composição das delegações e da sociedade civil — esses documentos são importantes para que possamos monitorar o peso dos grandes grupos econômicos nas decisões. Quanto aos compromissos dos países desenvolvidos, vivemos um cenário difícil, com desaceleração econômica, crise fiscal e, em alguns casos, governos menos comprometidos com a agenda climática. Isso tem levado muitos a reduzir ou adiar suas contribuições, mantendo-as em banho-maria.
Há também uma pressão crescente para ampliar a base de doadores, envolvendo países emergentes. Como isso se reflete nas negociações?
De fato, os países do Norte Global têm pressionado para que economias emergentes, como a China e o Brasil, também contribuam com o financiamento climático. O Acordo de Paris, no entanto, estabelece que essas contribuições sejam voluntárias e ocorram por meio da cooperação Sul-Sul. Nesse sentido, a China tem exercido um papel importante, investindo em tecnologias verdes e infraestrutura sustentável em outros países do Sul Global. O Banco dos Brics (NDB) também tem ampliado sua carteira para projetos climáticos. Há um movimento de articulação entre as economias emergentes para avançar de forma independente, já que os compromissos do Norte Global historicamente não foram cumpridos.

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