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Mariana Luz: 'Não podemos nos contentar com pouco na educação infantil'

Especialista explica a importância da implementação da Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI) e reforça que essa é a fase da vida que merece mais atenção do poder público e da sociedade

O recado é claro: não há espaço para espera, colocar a primeira infância entre as prioridades do país é urgente. E essa importância começa em casa, no cuidado diário com os pequenos, e se estende a todos os aspectos da vida em comunidade. A escola é o principal deles e responsável por contribuir para o desenvolvimento integral das crianças, desde os estímulos adequados para a idade até a nutrição correta.

A Política Nacional Integrada da Primeira Infância traz, pela primeira vez, um guia para que União, estados e municípios exerçam seus papéis com orientações concretas de como tornar central o cuidado com as crianças. "Não podemos nos contentar com pouco na educação infantil, que é esse pico de desenvolvimento. Temos que garantir o melhor nessa fase da vida, porque essa é uma oportunidade única", avalia a CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Mariana Luz.

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Leia os principais trechos da entrevista a seguir:

O que deve mudar no cuidado com as crianças a partir da aprovação da Política Nacional Integrada da Primeira Infância?

Essa política tem um papel muito importante, como desdobramento de um conjunto de leis que existe no Brasil. Temos um arcabouço legal importante no Brasil desde a Constituição, que coloca a criança com prioridade absoluta; depois, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). E há quase 10 anos temos o Marco Legal da Primeira Infância, que também previa muitas diretrizes e foi muito importante nesses últimos anos para ter um papel de mobilizar os municípios, com ações concretas. Mas ainda não havia, no âmbito federal, o que estava previsto nesse Marco Legal, ou seja, uma política que direcionava como implementar tudo isso, como fazer o pacto federativo valer, como ter o governo federal, os governos estaduais e os municípios organizados com um olhar direcionado para implementar essa política. O que muda — além de ser uma escolha política, porque nesse momento o Brasil escolhe a primeira infância como estratégia de combate à pobreza e à desigualdade — é que também temos esse elemento de fornecer o caminho para que estados e municípios possam não só se envolver politicamente com essa mobilização e sensibilização, mas também mostrar caminhos concretos de operá-la.

Quais cuidados básicos elencaria como os que merecem mais atenção durante a infância?

Se eu tivesse que falar uma palavra seria: intersetorialidade. Isso quer dizer que eu preciso pelo menos dos quatro eixos: assistência social — programas de formação de vínculo, visitas domiciliares, etc.; educação — precisa ter creche e escola; saúde — atendimento de saúde básica desde a gravidez; e um sistema de combate à violência. E aí é preciso abrir o parênteses: o foco da política é priorizar famílias que estão em vulnerabilidade socioeconômica.

Alguns pais se preocupam muito com o ensino formal, esse deve ser o foco da atenção?

Hoje em dia você vê um movimento de escolas em busca por ter um ensino integral que, claro, é adequado e é importante — muitas vezes, é transformador tanto para crianças quanto para a família — mas não pode ocorrer em detrimento do espaço físico, da natureza. Não podemos nos contentar com pouco na educação infantil, que é esse pico de desenvolvimento. Temos que garantir o melhor nessa fase da vida, porque esse é uma oportunidade única. Promover uma educação infantil 'encadeirada', onde uma criança senta na cadeira e olha para o quadro, não funciona. Ela não vai aprender, ela não vai se desenvolver. Ela precisa de práticas lúdicas, enriquecidas, estimulantes, adequadas para sua etapa da vida.

O que garante uma educação de qualidade nessa etapa do ensino?

Muita gente pensa a qualidade de educação infantil como algo utópico. Não é. Existem quatro elementos. O primeiro é você ter a infraestrutura adequada. Depois, você tem de ter materiais adequados, porque não é colocar a criançada para aprender números e letras na educação infantil que vai fazê-las lerem melhor, entende? Está comprovado isso. Precisamos exercitar esse lado criativo, investigativo, lúdico, da brincadeira, da experiência com a natureza. Isso é qualidade, não a gente escolarizar as crianças na educação infantil. E aí você tem outros dois componentes que são de qualidade e que pais e mães nem sempre conseguem avaliar. O professor, que é a chave de qualquer etapa da educação. Você tem de  ter professores qualificados para aquela etapa da vida, entendendo o que está acontecendo com a criança, qual é esse pico de desenvolvimento tão fenomenal, extraordinário, importante, para oferecer acolhimento, a possibilidade de identificar sentimentos, não ter televisão em sala de aula. Precisamos olhar para esses detalhes e perguntar para o professor, no dia a dia, qual é a formação dele, o que ele acredita que é a educação infantil, quais são as expectativas, fazer essa investigação com o professor. O quarto elemento são práticas lúdicas enriquecidas, adequadas à Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil.

Antonio Cruz/Agência Brasil - Mariana Luz na cerimônia de sanção da PNIPI, com o presidente Lula e ministros de Estado

Como a escolarização dos pais influencia o cuidado na primeira infância? Há uma perspectiva de que haja melhora nas próximas gerações?

Eu tenho o entendimento de que tem melhorado, mas as pesquisas jogam um balde de água fria nessa minha hipótese. Eu acho que tem melhorado, aumentado o reconhecimento dessa etapa, mas é ainda algo distante de todo mundo entender. A maioria ainda acha que a escola é um lugar só para deixar as crianças e os pais poderem trabalhar — o que é importante também. Mas a creche é também um lugar de segurança alimentar. A criança que está o dia inteiro na creche faz até cinco refeições por dia. Ela é um lugar de proteção, porque se o ambiente da casa é violento, ela está fora desse ambiente violento durante o dia e a professora e a escola são os principais canais de denúncia para violação de direitos. Mas eu ainda acho que temos avançado muito. 

Como o cuidado nos primeiros anos de vida pode ajudar a combater problemas de saúde mental?

Minha sensação com a primeira infância é de que todo mundo não torna a primeira infância urgente, justamente porque todo mundo acha que ela é o futuro apenas. E é o contrário: ela é o agora. Essa coisa de que a criança é o futuro, é o amanhã, fica muito longe, e aí ninguém entende a importância do hoje, de ser prioridade, de estar no orçamento, de cuidar. Fica nessa esperança de um amanhã que não chega. O lance é que os retornos são rápidos na primeira infância. Falando de saúde mental, hoje você tem picos de muitas doenças que, em sua maioria, são causadas pelo ambiente — por alguma questão familiar, uma gravidez indesejada ou estressada, ou um ambiente violento, com sobrecarga — onde essa possibilidade de formar um vínculo com amor, com afeto, com carinho, não foi dada a esses pais. E, na medida em que ela não é dada aos pais, o pai não tem condição de oferecer para criança. Então, o desafio de saúde mental tem relação com cuidar de quem cuida. Significa ativar a rede de apoio, ativar esse espírito de comunidade, onde todas as crianças são nossa responsabilidade, onde a gente preza pelo básico, que é o bem-estar meu, seu, de todos nós e do outro, sabe? Existem inúmeros estudos e evidências que mostram a correlação que uma primeira infância bem vivida é melhor para a saúde, é menos doença crônica e menos problema de saúde mental. Não é uma hipótese, são evidências absolutamente correlacionadas e diretamente interligadas.

Quais os riscos que a internet oferece para as crianças sob essa perspectiva?

Imensos. A Política (Nacional Integrada da Primeira Infância) não trata disso, mas a gente acabou de aprovar o ECA Digital, que olha justamente para oferecer esses limites, regras e obrigações para as empresas responsáveis pelas redes. O que defendemos na Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e que a nossa última pesquisa trouxe, além de acompanhar e de apoiar o movimento do ECA Digital, é seguir o que indica a Sociedade Brasileira de Pediatria. Zero tela até os 2 anos de idade, e tela é celular, iPad, televisão, computador. E não é à toa, tem estudos que baseiam isso. Esse é o pico do desenvolvimento no início da vida. E é o momento em que você tem que formar vínculo com a criança. Tudo isso acontece nesses primeiros mil dias, é o que podemos chamar de primeiríssima infância. Depois, a Sociedade Brasileira de Pediatria diz: uma hora por dia até os 5 anos — e mediada por um adulto. E, contextualizando, só para não parecer que estamos sendo duros com os pais, a gente sabe que, muitas vezes, essas tecnologias funcionam como um apoio para quem está lutando para sobreviver. Não estamos aqui culpando ninguém. Mas é igual ao cinto de segurança. Se você faz a sociedade entender, ver que isso é pior para o teu filho, que vai dar menos oportunidade, que vai, ao contrário, tirar a renda dele, tirar a oportunidade de quebrar a pobreza intergeracional, eu acho que a gente tem força. E é possível. Agora, precisa educar os pais também. Não adianta tirar da criança e deixar pai e mãe no celular o tempo todo. Eu sempre falo isso também. Então é um processo, e um processo coletivo.

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