A adultização se manifesta sempre que a criança é empurrada para papéis que não correspondem à sua idade, seja no corpo, no comportamento ou nas responsabilidades que assumem antes do tempo.
“A adultização é uma quebra de expectativa quanto ao lugar que as crianças ocupam em dado contexto social”, explica Renata Tomaz, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisadora da Rede de Comunicação, Infâncias e Adolescências (Recria). “O limite está na garantia de direitos. Quando uma fala, uma roupa, um gesto ou uma atividade afeta um direito conquistado em favor da criança, rompemos a fronteira da infância. Uma criança adultizada é uma criança que perdeu seu direito de estar criança em determinada situação.”
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Embora os holofotes geralmente se voltem para meninas, Renata lembra que os meninos também sofrem pressões. “Eles também são erotizados, embora isso gere menos visibilidade. Quando são apresentados como jovens investidores, ensinando outros a ganhar dinheiro, por exemplo, também estamos diante de adultização.”
“A adultização não começou agora nem foi inventada pela internet. Desde antes, crianças já eram colocadas em situações que não lhes cabiam, como no trabalho infantil, na erotização em programas de TV ou em responsabilidades precoces dentro de casa”, lembra Renata Tomaz, ao destacar que a internet potencializou e ampliou o alcance desses conteúdos.
Para a pesquisadora Juliana Doretto, da PUC-Campinas, a adultização está ligada à forma como a sociedade enxerga a infância. “Vivemos em um mundo regido pela maturidade adulta, que considera o modo como a criança pensa e sente como algo menor. Não reconhecer a infância em sua integralidade, não garantir os direitos mínimos, também é adultização”, aponta.
Ela reforça que a criança é sujeito de direitos,inclusive de se expressar artisticamente. “A criança tem direito à vivência social, a se expressar, a participar da vida em comunidade e a criar. Mas isso é diferente de ser empurrada para papéis que não correspondem à sua fase de desenvolvimento”.
Na prática, as famílias se veem diante de pressões constantes. A educadora física Emilly Serodio, 28 anos, mãe da Ana Liz, de 7 anos, e do Lucca, de 2 anos, relata como busca proteger a filha. “Hoje em dia as pessoas esperam que a criança se comporte como adulto. Que não chore, não pule, que saiba controlar emoções. Isso é uma cobrança exagerada. Eu converso muito com a Ana Liz para mostrar que criança tem que brincar, pular corda, jogar bola. Dançar não é vulgar, mas algumas coreografias não cabem na infância e eu explico isso para ela.”
A pressão, segundo Emilly, também vem do consumo e até da escola. “No aniversário da Ana Liz, a professora sugeriu que os colegas dessem maquiagem de presente. A própria Ana respondeu: maquiagem não é coisa de criança. Fiquei surpresa, mas feliz por ver que ela já reproduz o que a gente conversa em casa”, conta.
O papel das plataformas digitais
Para especialistas, não é justo transferir toda a responsabilidade às famílias. “É desumano e no mínimo injusto deixar essa responsabilidade exclusivamente sobre os ombros dessas famílias. Não é certo jogar para dentro das casas brasileiras um problema que foi criado fora delas”, afirmou Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.
Segundo ela, as próprias plataformas digitais impulsionam conteúdos que erotizam e adultizam crianças. “As maiores responsáveis por mudar esse cenário são as plataformas, que lucram com a atenção e a exploração das crianças. Proteger nossas crianças não é uma decisão política, é um ato de humanidade.”
A criadora de conteúdo Sheylli, que se dedica a denunciar práticas de exploração digital, lembra que o cenário das redes é muito diferente da TV aberta. “É claro que a família tem sua parte, mas diante do jeito que as redes atuam, com muito pouca ética, é difícil proteger as crianças. Se alguém ligar a TV hoje em qualquer canal, não vai ver pornografia às três da tarde porque existe regulação. Nas redes, não há nada parecido. Por mais que o pai esteja zeloso, eu já entrevistei mães que perderam filhos em desafios online.”
O ECA Digital
No fim de agosto, o Senado aprovou o PL 2628/2022, apelidado de ECA Digital, que agora segue para sanção presidencial. O projeto cria mecanismos de proteção específicos para crianças e adolescentes no ambiente online, incluindo supervisão parental obrigatória, verificação de idade robusta, regras mais rígidas de proteção de dados e sanções pesadas para plataformas que descumprirem as medidas.
Para a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, o novo estatuto “é um passo histórico para garantir que os direitos já previstos na Constituição e no ECA se estendam ao ambiente digital”. Na prática, o ECA Digital passa a tratar a internet com o mesmo rigor que a televisão: horários protegidos, classificação de conteúdo e responsabilidade das empresas.
Especialistas em direito digital consideram a medida essencial. “O ECA de 1990 foi revolucionário, mas a internet não existia na vida das crianças. Atualizá-lo significa reconhecer que hoje a exploração, a erotização e a adultização também acontecem online”, explica o advogado Amaury Andrade.
Para Amaury, a legislação precisa acompanhar as mudanças sociais. “O Estatuto da Criança e do Adolescente já proíbe a exploração econômica e assegura o direito à proteção integral. Mas é preciso atualizar a interpretação desses direitos para o digital. Hoje, a exposição em redes pode equivaler a exploração de imagem e até de trabalho infantil. É fundamental responsabilizar também as empresas de tecnologia, e não apenas as famílias.”
Juliana Doretto destaca ainda que a imprensa também é um campo essencial nessa discussão. “Crianças e adolescentes buscam informação. E nós, comunicadores, precisamos pensar neles como consumidores de notícias. Antigamente havia até jornais voltados para o público infantil, mas hoje, se a imprensa não falar a língua deles, vão se informar onde podem: nas plataformas digitais, muitas vezes sem apuração ou responsabilidade social.”, destaca.
Um tempo que não volta
Em meio às pressões da sociedade, às falhas das plataformas e à necessidade de políticas públicas, o recado dos especialistas é uníssono: a infância é uma etapa única e deve ser respeitada. “A infância é um tempo irrepetível, que não pode ser comprado nem recuperado”, resume Maria Mello.
Mais do que uma discussão sobre vídeos virais, a adultização expõe os limites entre o que é direito da criança e o que é exploração. E lembra a famílias, empresas e Estado que proteger esse tempo é um dever coletivo.
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