“A cidade é minha.” Longe de ser arrogante ou egoísta, a frase do professor Francisco Alves Feitoza, 81 anos, é um reconhecimento às gerações de estudantes que ajudou a formar, em aulas de língua portuguesa e de literatura que grande parte deles guarda na memória até hoje. De artistas a juízes, uma legião — e até a própria banda de rock da capital — passou pelas salas de aula desse fã de Dom Quixote que se tornou, ele também, um viajante do universo literário.
Nascido em 17 de março de 1944, no sertão alagoano, aos 10 anos mudou-se para Penápolis (SP). Após dois anos de seca e com a morte do pai, a mãe, Lindaura Alves de Sá, partiu com os 11 filhos para o Sudeste do país. Chegou à cidade grande “analfabetíssimo”, como conta. “Só sabia ler as pedras do agreste, que era o que eu usava para encantar minhas professoras lá de São Paulo.”
Francisco é o filho do meio, o sexto. “Tem cinco mais velhos e cinco mais novos”, reforça. Antes de firmar raízes em Penápolis, a família passou pela capital paulista. Era época das celebrações dos 400 anos de São Paulo. A metrópole espantou o menino, que ainda não sabia a surpresa que o aguardava dentro da sala de aula. “Antes de ser professor, a gente é aluno. Aliás, aluno a gente é sempre”, destaca, para em seguida começar a contar a história sobre a própria trajetória escolar.
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Também faz questão de ressaltar aquiloque, para ele, é o foco do fazer pedagógico. “Dar aula é uma questão de provocar nos outros encantamento. Quem não consegue encantar, não consegue ensinar, e o que encanta as pessoas é a descoberta. Aquele estalo em que a pessoa descobre que ela já tem tudo de que precisa. Ensinar é só lembrá-las disso."
O mundo das letras
A primeira lição de encantamento que Feitoza teve na vida foi aprender a ler. “Eu ficava igual a um bobo lendo as placas da rua. E achava isso uma maravilha. Era igual o cego que via pela primeira vez: encantamento.”
Além do encantamento, veio a vontadede aprender mais e mais. “Eu queria saber o que aquelas pessoas faziam para ter boas casas, boas roupas, dormir até mais tarde”, elenca. “Para mim, tudo era espanto. Tudoera mágico. Então, logo que eu aprendi apassar para o papel as primeiras letras, eu contava as histórias que um menino que vive no sertão aos 10 anos já sabe: conhecer as cobras todas, conhecer briga de aranha com caranguejo”, conta, aos risos.
“Eu era sabido. Colocava minhas histórias, as minhas façanhas — correndo atrás de cobra, vendo como é que as cobras fazem para encantar os passarinhos e pegá-los — nas minhas redações. Eu era caprichoso, letra bonita. As professoras achavam aquilo bonitinho e saíam comigo mostrando de sala em sala”, orgulha-se.
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Quando chegou à quarta série, o caminho natural seria deixar os estudos para trabalhar e ajudar no sustento da família. Mas a conexão que havia construído com as professoras ajudou a não desistir da escola, mesmo sob protesto dos irmãos, que achavam aquilo tudo perda de tempo e arrogância. “As professoras não me deixaram desistir”, relata.
“Naquele tempo, havia a admissão ao ginásio. Depois da quarta série, eram quatro anos, e era preciso fazer admissão, porque não havia vaga para todo mundo. Estudar era algo muito elitizado. As professoras, então, me compraram o livro de admissão ao ginásio, com as matérias todas, e diziam: ‘Se você precisar, você vem aqui que eu te dou aula’”, recorda-se.
Francisco aceitou a ajuda e fez um trato com os irmãos: ele trabalharia e cumpriria com as obrigações em casa, mas não deixaria os estudos. Dito e feito: das 50 vagas disponíveis para 300 candidatos, ele garantiu uma. Houve até um certo toque do destino, pois foi a primeira turma de ginásio noturno da cidade, o que permitiu manter o emprego durante o dia. Adolescente, fazia entregas de bicicleta para um casal de empresários de ascendência japonesa, dono de uma quitanda em Penápolis.
“Foi outro pessoal que me deu estrutura de família. Em casa, ninguém me cobrava nada, não, mas esses japoneses aí me cobravam!”, relembra Feitoza. “Eles gostavam muito de mim. A senhora me dizia que eu ia ser daigaku no sensei: professor universitário.” E quase acertou. Ao longo da carreira, Feitoza especializou-se em análise e interpretação de texto e em literatura brasileira, e de fato virou professor, no ensino médio. Para encerrar o ciclo básico da educação, optou, depois do ginásio, por cursar o clássico, trajetória escolhida por quem se identifica mais com as ciências humanas.
Destino em Brasília
O próximo capítulo da história de Francisco começa com mais uma mudança, a definitiva. “Surgiu aqui uma coisa sagrada chamada UnB, com a missão de ser a escola de quem não tinha nem camisa para vestir. E eu vim fazer o vestibular aqui”, detalha o professor.
Ao terminar o curso clássico, Francisco teve como paraninfo da turma o então deputado federal Mário Covas. “O prêmio que ele deu para nós da turma foi um voo da FAB (Força Aérea Brasileira) para vir aqui conhecer a UnB. Eu vim e vi. Achei isso aqui com uma cara daquele fim de mundo, sabe? E era mesmo. A Asa Norte não tinha prédio, não tinha nada.”
Com uma concorrência de um e meio candidato por vaga, Francisco se diverte ao contar que a missão de ser aprovado, em 1967, para o curso de letras recém-criado não foi muito difícil. As aulas ocorriam num grande barraco, o Galpão Provisório de Aula. Nos primeiros anos, viveu no alojamento da universidade, e recebia bolsa, junto a outros estudantes que também tinham vindo de Penápolis. “O pessoal não aguentava, a solidão era dolorosa, terrível”, conta. Para ver um canto com cara de cidade o jeito era ir até Taguatinga. “Tinha tudo ali: forró, zabumba, churrasquinho de rua….
Foi contemporâneo da jornalista e professora de língua portuguesa Dad Squarisi e dos irmãos Clodo, Climério e Clésio. Do último, virou até compadre. “Eles foram a família que eu tive aqui em Brasília. Eu ia lá comer o baião de dois da dona Alice, mãe deles”, alegra-se.
Ao longo do curso, descobriu na universidade o que descreve como “um paraíso escondido”: a Biblioteca Central dos Estudantes (BCE). “Tudo o que eu gostaria de ler, tudo o que eu gostaria de saber, tinha lá. Uma maravilha!”, conta Feitoza, lembrando também dos guindastes que à época erguiam o Instituto Central de Ciência (ICC), apelidado de Minhocão.
Multidão de fãs
Já no início dos anos 1970, foi aprovado para o concurso da chamada Fundação Educacional, para atuar na rede pública de ensino do DF, em segundo lugar geral. Começou a dar aulas em Sobradinho, onde se deparou com outro encantamento: Consuelo. A coordenadora educacional da escola se tornaria, anos mais tarde, sua mulher, com quem teve três filhas, Valéria, Laís e Maira, para as quais também deu aulas.
Aliás, a partir daí começa uma trajetória pela educação de Brasília que nenhum do sex-alunos o deixa esquecer. Nas passagens por escolas públicas e pelos principais colégios particulares da cidade — muitos dos quais ajudou a fundar — deu aulas para alunos como Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que depois formariam a Legião Urbana; o diretor de cinema René Sampaio, de Eduardo e Mônica; o compositor Hamilton de Holanda, contemporâneo e amigo de sua filha Valéria; o neurocientista Sidarta Ribeiro; o poeta Nicolas Behr; as jornalistas Leilane Neubarth e Márcia Witzack; e várias outras personalidades da cidade, entre políticos, cientistas, artistas e muitos bem-sucedidos profissionais. “Os alunos me aplaudiam muito. Eu falava a linguagem deles.” (Leia depoimentos abaixo)
Ao lado dos professores mais renomados da época, deu aulas nos primeiros anos do Objetivo, depois no Sigma e participou do início do Galois. Também chegou a lecionar para estudantes do Marista. Na maior parte do tempo, conciliou o trabalho com a atuação na rede pública de ensino. Era aula manhã, tarde e noite.
“E até hoje os juízes e advogados que já tiveram aula comigo, quando me encontram por aí, é festa e agradecimento”, diz. Também admite que cometeu o que nas salas de aula é considerado pecado capital: colou. Mas, quando diz isso, apenas traduz o sentido de inspiração e de respeito. “Eu colei dos professores que eu tive. Já que eles foram os melhores, já que eles me deram as melhores aulas. Eles me ensinaram a entender Machado de Assis, a amar Machado de Assis; a amar Padre Antônio Vieira. Eu fiz a cola”, brinca.
“Olha, se político tivesse juízo, só investiria em educação. Tem que ser a melhor possível. Educação é tudo. Eu nunca fui nada. Sou um ex-pau-de-arara, retirante, que chegou analfabeto a São Paulo. Tudo o que eu tenho é porque acreditaramem mim, porque me apoiaram. Eu digo para os meus alunos: a palavra educar vemdo latim duco/ducores, que quer dizer “eu dirijo”, eu não sou dirigido. Educar é conduzir. Era isso que que ensinava aos meusalunos: o segredo está na palavra, abra a palavra, escancare a palavra que lá dentro tem o saber”, atesta.
A rotina agitada e o estresse cobraramo preço. Há cerca de 18 anos, Feitoza sofreu um infarto e, em seguida, veio a aposentadoria. Agora, desfruta da companhia das filhas e do neto, Guilherme, que nasceu no Dia do Professor, celebrado em 15 de outubro. “Foi o meu presente”, comemora o avô, orgulhoso, abraçando o rapaz.
E perto dessa celebração tão simbólica para a família quanto para a educação, ele ensina qual o segredo para causar encantamento nos estudantes: “Levando-os a acreditar neles mesmos”.
Ex-alunos prestam homenagens ao mestre
"Meu querido professor de Literatura, Feitoza, teve um papel fundamental na minha relação com a leitura. Foi ele quem incentivou em mim o gosto pelos livros, conduzindo as aulas de um jeito único, diferente de tudo que eu tinha vivido. Havia em seu olhar algo profundamente artístico e poético, uma forma de enxergar a palavra e o mundo que dialogava com a maneira como eu também via a vida. Ele nos ensinava não apenas a interpretar um texto, mas a contemplar sua beleza, a perceber o que há de humano e essencial nas entrelinhas. Com ele, aprendi que o senso crítico e a sensibilidade podem caminhar juntos, e que ler é, acima de tudo, um ato de arte e de liberdade."
Hamilton de Holanda, músico
“Ele foi maravilhoso, extremamente importante e estimulante intelectualmente. As aulas que me deu sobre o período Barroco nunca vão sair da minha memória. Muito querido e amado mestre.”
Sidarta Ribeiro, neurocientista
"Ter sido aluna do meu pai foi uma experiência única — um misto de orgulho e de nervosismo. Aos 16 anos, eu tinha medo dos comentários dos colegas, de alguma exposição da vida privada de pai e filha... Mas depois eu percebi que estava diante de um privilégio raro. Nas aulas de literatura, ele não ensinava apenas sobre interpretação de textos, mas sobre as entrelinhas da vida. Eu aprendi a ler o mundo como quem lê um poema, buscando o subtexto dos gestos e das emoções. E aprendi o valor de buscar as palavras exatas pra me expressar. Não foi à toa que me tornei jornalista e dediquei minha vida a trabalhar também com as palavras. Eu tenho um orgulho e uma admiração imensuráveis pela história e pelos ensinamentos do meu papito - assim é como eu o chamo em casa. Entre tantas coisas, o conhecimento e a sensibilidade para ler as entrelinhas são seus principais legados na minha vida."
Valéria Feitoza, filha e servidora do TCDF
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