
Depois de tomarem Goma, capital de Kivu do Norte e principal cidade do leste da República Democrática do Congo (RDC), o grupo antigovernamental congolês Movimento 23 de Março (M23) e tropas de Ruanda continuam a avançar no leste da RDC, em busca de tomar a capital de Kivu do Sul, Bukavu. As informações são da agência France-Presse e da ONU News.
O conflito, que escalonou em janeiro de 2025 mas tem raízes históricas muito mais profundas, obrigou 500 mil congoleses a deixarem as próprias casas. No último dia 5 de fevereiro, uma autoridade da Organização das Nações Unidas (ONU) confirmou a morte de pelo menos 2,9 mil pessoas nos combates pela captura da capital de Kivu do Norte, rica em ouro e outros minerais indispensáveis para o setor tecnológico.
“Dois mil corpos foram recuperados das ruas de Goma nos últimos dias e outros 900 estão no necrotério”, afirmou a chefe-adjunta da missão da organização internacional na RDC — a 'Monusco' —, Vivian van de Perre, durante uma conferência de imprensa. Na última sexta-feira (7/2), o Conselho de Direitos Humanos da ONU decidiu iniciar investigação sobre possíveis atrocidades ocorridas em decorrência do conflito.
Nesta terça (11/2), o vice-representante das Nações Unidas para a RD Congo, Bruno Lamarquis, disse que rebeldes do M23 se aproximam da cidade de Bukavu. Apesar de ter declarado cessar-fogo unilateral no dia 4 de fevereiro devido a “razões humanitárias”, o grupo armado e forças ruandesas tomaram a cidade de Nyabibwe, em Kivu do Sul, dias antes de cúpula em que os presidentes congolês e ruandês tentariam chegar a acordo.
Segundo a AFP, o M23 havia afirmado, com o cessar-fogo, que não tinha a intenção de tomar o controle de Bukavo ou de outras localidades — embora tivesse anunciado, na semana anterior, que pretendia seguir para Kinshasa, capital da RDC. A tomada de Nyabibwe, a 100 km da capital de Kivu do Sul, demonstra o contínuo avanço das tropas rebeldes e ruandesas.
O grupo armado afirma que deseja “libertar toda” a República Democrática do Congo e “expulsar” o presidente congolês, Felix Tshisekedi.
Crise humanitária
Nesta quinta-feira (13/2), a diretora da Unicef, Catherine Russell, alertou sobre o aumento de violações de direitos da infância pelas partes envolvidas no conflito, inclusive sobre casos de estupro e outras formas de violência sexual contra crianças “em níveis nunca vistos nos últimos anos”.
Além disso, centenas de meninas e meninos foram separados das respectivas famílias. Nas últimas duas semanas, foram identificados 1,1 mil menores desacompanhados em Kivu do Norte e Kivu do Sul — ainda mais expostos, dessa forma, a riscos de sequestro, violência sexual e utilização por grupos armados.
Entre 27 de janeiro e 2 de fevereiro, parceiros da Unicef na região registraram um número cinco vezes maior de estupros tratados — sem contar os que não foram denunciados —, dos quais 30% das vítimas eram crianças. A diretora disse, também, que os trabalhadores humanitários “estão ficando sem medicamentos para reduzir o risco de contrair o HIV após agressões sexuais”.
O combate gerou também escassez de alimentos e de medicamentos, fome, saque da ajuda humanitária pelos rebeldes e propagação de doenças.
Embora Estados Unidos, China e União Europeia tenham pedido a retirada de tropas de Ruanda do país vizinho, o presidente congolês disse, no último 30 de janeiro, que o silêncio e a “inação” internacional em relação à crise “são uma afronta”. Tshisekedi afirmou que o leste da RDC “enfrenta uma deterioração sem precedentes da situação de segurança”.
Linha do tempo
Desde que ressurgiu, em 2021, o grupo antigovernamental M23, da RD Congo, vive em confronto com o exército do próprio país e tomou diversos territórios congoleses. No fim de janeiro deste ano, o conflito se intensificou e contou com a entrada de mais de 3 mil soldados de Ruanda e o sitiamento de Goma, que faz fronteira com o país vizinho.
O M23 havia tomado Goma no fim de 2012, antes de ser derrotado por forças congolesas e pela ONU em 2013.
Até o dia 25 do primeiro mês de 2025, 400 mil pessoas no leste da RDC haviam sido forçadas a se deslocarem, e 13 membros de forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) haviam morrido em combate.
No dia 26 de janeiro, a ministra das Relações Exteriores da República Democrática do Congo, Thérèse Kayikwamba Wagner, denunciou a entrada de mais tropas ruandesas no país perante o Conselho de Segurança do organismo internacional. Ela afirmou que a ação era “violação aberta e deliberada” da soberania da RD Congo e “uma declaração de guerra que não se esconde atrás de truques diplomáticos”.
A representante pediu à ONU que estabelecesse sanções políticas e econômicas contra Ruanda. No mesmo dia da reunião de emergência realizada pelo Conselho, o secretário-geral da organização, Antonio Guterres, pediu, apoiado no direito humanitário internacional, que as forças ruandeses se retirassem do território congolês e cessassem o apoio ao M23.
A ONU começou, nesse período, a retirar funcionários de Goma; e países como Estados Unidos, França, Reino Unido e Alemanha pediram que cidadãos deixassem a cidade enquanto o aeroporto e as fronteiras ainda estavam abertas.
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Na segunda seguinte aos pronunciamentos (27/1), que ocorreram em um domingo, os combates se intensificaram: pelo menos 17 pessoas foram mortas e 367 ficaram feridas, conforme balanços de hospitais.
Ruanda afirmou que mantinha “postura defensiva” porque combates próximos à fronteira representavam “séria ameaça” à segurança e à integridade territorial do país. Um porta-voz do Exército afirmou que, também no dia 27, cinco civis ruandeses foram mortos e outros 25 ficaram feridos em uma cidade que faz fronteira com Goma.
No dia 28 de janeiro, a AFP noticiou que as embaixadas de Ruanda, França, Bélgica e Estados Unidos em Kinshasa, a capital da RD Congo, foram atacadas por manifestantes. O objetivo era denunciar ao mundo o conflito no leste do país, bem como criticar a inércia, diante da situação, dos países cujas representações foram atacadas.
No mesmo dia, o M23 tomou o aeroporto de Goma e a sede da autoridade provincial. A essa altura, o número de mortos havia subido para 100 e o de feridos para mil. Jornalistas da agência de notícias francesa reportaram “numerosos corpos de soldados e civis” espalhados pelas ruas da cidade.
A maioria dos moradores permanecia trancada nas próprias residências, há um período de então quatro dias, sem água ou energia elétrica, a fim de se protegerem de bombardeios, combates armados e saqueamentos. Depósitos de ajuda humanitária também foram saqueados.
Depois de tomarem a cidade-chave do conflito, no Kivu do Norte, o grupo armado abriu, no dia 29, uma nova frente no leste da RDC, avançando para mais duas localidades em Kivu do Sul. Segundo fontes locais, não houve combates, mas moradores confirmaram a chegada dos rebeldes.
Histórico
A fronteira entre República Democrática do Congo e Ruanda sofre com conflitos e violências históricas, que culminaram em um genocídio da etnia tutsi em Ruanda, em 1994. Desde então, rivalidades regionais, disputas étnicas e combates entre grupos armados foram agravados nos territórios próximos à divisa e ocorrem por mais de 30 anos.
O M23 é de maioria tutsi e, nos últimos anos, tomou grandes extensões territoriais no leste da RDC alegando defender a população da etnia no país. Oficialmente, o grupo congolês rejeita o apoio de Ruanda e se apresenta como um movimento nacional com o objetivo de derrubar o governo do atual presidente da RD Congo.
O governo ruandês também nega controle sobre o M23 e qualquer envolvimento militar no conflito. A briga do país, segundo o presidente Paul Kagame, é contra as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR) — grupo armado formado por responsáveis, da etnia hutu, pelo genocídio dos tutsis em 1994 —, supostamente apoiadas pela RDC.
O governo de Ruanda afirma que deseja erradicar grupos armados da região, em especial as FDLR, para garantir a própria segurança. A missão da ONU na RD Congo alerta para o risco de os combates reacenderem conflitos étnicos que remontam à época do genocídio, em que 800 mil pessoas foram mortas.
Em julho do ano passado, RDC e Ruanda haviam assinado um acordo de cessar-fogo. O tratado de paz, que seria assinado em dezembro, porém, nunca saiu do papel, pois o presidente ruandês se recusou a participar de cúpula realizada por Angola para selar o fim dos conflitos.
De acordo com a AFP, as Forças Armadas Congolesas (FARDC) “pertencem a um exército mal equipado e corroído pela corrupção”, apoiado pelos capacetes azuis da Missão da ONU na RDC, por soldados da missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral no país (SAMIRDC) e por duas empresas de segurança privada. Apesar disso, não conseguiram, ainda, combater os rebeldes e os invasores.
Outros países, como Uganda e Burundi, também destacaram tropas para o leste da RD Congo com o pretexto oficial de apoiar o Exército congolês. A agência de notícias francesa, porém, destaca que as nações podem buscar estender influência sobre “uma zona que escapa cada vez mais do controle de Kinshasa”.
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