Tensão no Oriente Médio

Irã: Pentágono tenta conter danos após controvérsia sobre urânio

Pete Hegseth, secretário de Defesa dos EUA, defende versão de Trump sobre a destruição total do programa nuclear iraniano e ataca a imprensa. Especialistas veem exagero do presidente americano ao avaliar o impacto dos bombardeios

Aaiatolá Ali Khamenei fala em rede nacional de tevê e diz que Irã esbofeteou os EUA  -  (crédito: khamenei.ir/AFP)
Aaiatolá Ali Khamenei fala em rede nacional de tevê e diz que Irã esbofeteou os EUA - (crédito: khamenei.ir/AFP)

Primeiro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a "obliteração" do programa nuclear iraniano, por meio do ataque com bombardeiros B-2 e caças às usinas atômicas de Fordow, Natanz e Isfahan. Depois, um relatório preliminar do setor de inteligência do Pentágono informou que o enriquecimento de urânio de Teerã teria sofrido um atraso de até seis meses com a ofensiva americana.

Ante a guerra de versões, o secretário da Defesa, Pete Hegseth, saiu em "defesa" de Trump e da campanha no Irã. Em uma estratégia de contenção de danos, reuniu a imprensa e assegurou o sucesso dos ataques às centrais nucleares. "O presidente Trump criou as condições para pôr fim à guerra. Dizimando, aniquilando, destruindo — escolham a palavra — as capacidades nucleares do Irã", declarou.

Hegseth aproveitou para atacar a imprensa, que colocou em xeque a versão da Casa Branca. "Por buscar escândalos constantemente (...), estão perdendo momentos históricos", disse. Também atribuiu as controvérsias ao fato de o relatório preliminar ter sido publicado apenas um dia e meio após o ataque. "O próprio documento sustenta, por escrito, que são necessárias semanas para acumular os dados capazes de fazer tal avaliação", acrescentou. 

A Casa Branca, no entanto, reconheceu a autenticidade do relatório, obtido pela TV CNN, mas classificou-o como "totalmente equivocado", o que por alimentar a polêmica. O chefe do Estado-Maior, general Dan Caine, que acompanhava Hegseth na entrevista, esclareceu que os ataques tiveram como alvos dois poços de ventilação que levavam ao complexo subterrâneo de Fordow. Foi através deles que as bombas foram lançadas. O jornal The Financial Times publicou que agências de inteligência europeias concluíram que todo o estoque de urânio enriquecido foi retirado da instalação nuclear. 

Aaiatolá Ali Khamenei fala em rede nacional de tevê e diz que Irã esbofeteou os EUA
Aaiatolá Ali Khamenei fala em rede nacional de tevê e diz que Irã esbofeteou os EUA (foto: khamenei.ir/AFP)

Horas antes, o aiatolá Ali Khamenei fez raro discurso em rede nacional de televisão, no qual disse que o Irã deu um "tapa na cara" dos EUA, reivindicou vitória no conflito com israelenses e americanos, e acusou Trump de exagerar na análise sobre os bombardeios. "O presidente dos Estados Unidos disse que 'o Irã deve se render'. Nem é preciso dizer que essa declaração é grande demais para sair da boca do presidente dos EUA", afirmou o guia supremo iraniano. Khamenei assegurou que "nada de significativo" aconteceu às instalações nucleares do país. 

No outro extremo, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, divulgou um vídeo em que também admitiu triunfo na guerra e demonstrou otimismo em relação às consequências da "vitória" de Israel. "Ela abre o caminho para ampliar de maneira espetacular os acordos de paz." 

Para Gunther Rudzit, professor de relações internacionais da ESPM, Trump exagerou ao dizer que o programa nuclear tinha sido obliterado. "Ele é conhecido por usar adjetivos exagerados, e esse é o grande problema. Ao dizer 'obliterado', é como se não tivesse sobrado mais nada. Portanto, criou uma expectativa muito grande entre os americanos sobre isso", explicou ao Correio. "Por causa da altíssima expectativa criada pela fala do presidente, quando saem relatórios preliminares indicando que o programa nuclear não teria sido totalmente destruído, isso gera um impacto politicamente negativo para ele. Como bom trumpista que é, o secretário Hegseth teve que reafirmar a destruição do programa, ante o questionamento sobre se valeu a pena a ação e se o Irã buscará uma bomba atômica. Ele tenta fazer uma contenção de danos", acrescentou. 

Professor de geopolítica da FACAMP (Campinas), James Onnig vê uma batalha de narrativas em torno da suposta obliteração do programa nuclear. "É uma guerra que se estabele. Trump sempre fala que os ataques ao Irã foram bem-sucedidos, mas não diz 'acabou o programa nuclear'. Ele cita os termos 'obliteraram', 'bloquearam', 'atrasaram', porque ele sabe da dimensão do programa de enriquecimento de urânio", disse ao Correio.

Ele lembrou que o presidente dos EUA foi alvo de críticas pela demora em atacar o Irã e acabou "tragado" pela guerra. "A pressão de Israel foi muito grande. O secretário Hegseth afirmou que a ação foi 'pontual' e 'decisiva'. Vale destacar que este processo da guerra de 12 dias foi vencido pela 'Pax Americana'. Os EUA ajudaram o aliado e estabeleceram o cessar-fogo, mantendo-se no topo das geopolíticas mundiais como o negociado e o grande concluidor de conflitos, por meio da intervenção militar e da ação diplomática", afirmou Onnig. 

Planos

Durante uma entrevista coletiva na sede da representação diplomática, em Brasília, o Correio questionou Abdollah Nekounam Ghadirli — embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil — sobre as ameaças feitas por Trump de bombardear novamente o país, caso o enriquecimento de urânio seja retomado, e os planos do regime para o setor nuclear. "Se olharmos a história do programa nuclear pacífico do Irã, a resposta estará lá. Uma parte dessa história antecede a vitória da Revolução Islâmica do Irã (1979). Na época, os EUA reconheceram a necessidade de o Irã ter um programa nuclear e sugeriram a geração de 20 mil megawatts por parte de Teerã. Antes da revolução, fizemos uma parceria com uma empresa francesa, no âmbito do programa nuclear", afirmou.

"Outro lado da história é o pós-revolução. Desde o começo, os americanos alegam que os iranianos não têm o direito de usar o programa nuclear por possuirmos muitas fontes de petróleo e de gás. Mas, sabemos que essas fontes não surgiram depois da revolução. Se o resultado de qualquer revolução for o surgimento de gás e petróleo, então, temos grandes revoluções, não é?", ironizou o diplomata.

De acordo com Ghadirli, os Estados Unidos adotam uma política específica de proibir o Irã de desenvolver o programa nuclear pacífico. "Havia uma base de enriquecimento de urânio, em Teerã, usada para a produção de radiomedicamentos. Os EUA não permitiram que o Irã a utilizasse, depois da Revolução Islâmica. Também impuseram sanções sobre esses medicamentos", acrescentou. "Somos uma nação com 7 mil anos de civilização. Com certeza, tomamos as iniciativas para a produção de urânio enriquecido. Com honra, dizemos que todo o processo — o equipamento, a tecnologia e a produção — foi feito por nós mesmos. Todas essas conquistas foram feitas quando o Ocidente e os EUA nos proibiram."

PONTO A PONTO / Abdollah Nekounam Ghadirli, embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil

Inspeção nas centrais nucleares
"A resolução aprovada pelo Parlamento e apreciada pelo Conselho de Guardiões foi publicada pelo governo do Irã. Conforme o artigo 60 da Lei nº 1.979 de Viena (Agência Internacional de Energia Atômica ou AIEA), o governo iraniano deve esclarecer questões sobre isso. Essa lei determina que qualquer cooperação, no âmbito da resolução e do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), e para esclarecer quaisquer dúvidas, não será encerrada. Elas (inspeções) serão suspensas por um período determinado. Segundo a Carta da ONU, um dos motivos pelo qual essa suspensão ocorreu é a violação de de integridade territorial, além da insegurança em relação aos nossos cientistas e os desdobramentos durante este período (guerra). Faz parte da soberania de um país proteger suas informações e seus cientistas. "

Enriquecimento de urânio
"Outra questão que precisa ser ressaltada seria a confirmação do Irã, segundo o artigo 4 da resolução. Especialmente, o direito ao enriquecimento de urânio, em conformidade com o Conselho de Guardiões. O governo tem que seguir os próximos passos, de acordo com a resolução. Por mais que nos afastemos de todos os armamentos nucleares, de forma firme e forte, seguimos com os nossos direitos, no âmbito do TNP. Um deles é o de enriquecimento de urânio. Um país grande, como o Irã, com sua civilização, não pode se sentar e esperar que outra nação ofereça urânio, enquanto há pessoas doentes, que precisam de radiomedicamento."

Irã na cúpula do Brics
"Até este momento, estamos na fase de programação para a possibilidade de o senhor presidente da República Islâmica do Irã, Dr. Masoud Pezeshkian, vir à cúpula do Brics, no Brasil. Estamos seguindo as nossas programações."

Abdollah Nekounam Ghadirli, embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil
Abdollah Nekounam Ghadirli, embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil (foto: Rodrigo Craveiro/CB/D.A. Press)

O papel do Brics no conflito
"Nós expressamos os agradecimentos às declarações do governo brasileiro, que condenaram os ataques israelenses e os ataques dos EUA contra as nossas instalações nucleares pacíficas, que atuavam conforme o direito internacional. De uma forma natural, o Brics faz parte da organização para melhorar a ordem internacional e a necessidade de eficácia dos sistemas internacionais. O papel do Brics é colocar em ordem as partes ausentes da ordem internacional. Muitos ativistas políticos têm essa visão da incapacidade da ordem mundial. Os organismos internacionais estão sem capacidade de ordenar e gerenciar as questões globais."

Ameaças dos EUA
"Não fazemos questão, nem é importante para nós, se os Estados Unidos proíbem ou não o nosso programa nuclear. Nós seguiremos firmemente os nossos desejos e os nossos interesses. Eles pensaram que, com os assassinatos de nossos professores e nossos cientistas, às 3h30 da madrugada, quando estavam ao lado de suas mulheres e crianças, poderiam impedir o avanço do Irã."

Fechamento do Estreito de Ormuz
"Foi feito um decreto no Parlamento do Irã sobre essa sugestão. Se foi oficializado ou não... Acredito que não tenha sido. Não vi essa sugestão de forma oficial."

Afastamento do Brasil dos EUA
"Todas as ordens criadas no mundo, por meio de países e governos, têm uma única meta: o respeito à dignidade do ser humano. Essas ordens são para que nós possamos ter uma coexistência pacífica. As nações criaram organismos internacionais para que todas as ordens sejam seguidas pela via legal. Essas organizações criaram leis e direitos para que, sem conflitos e sem disputas, os países possam viver de forma pacífica e coexistir. Uma delas que foi criada por por meio dessas ordens é a AIEA. Conforme o artigo 4 do TNP, todos os países-membros têm direito a um programa nuclear e a enriquecer urânio. Dois países que detêm bombas nucleares e ogivas atômicas atacaram um país-membro do TNP e suas instalações nucleares pacíficas. Um deles não é membro do TNP, o regime sionista. Além de ter centenas de ogivas nucleares. O que está em jogo não é a interpretação de conflito entre dois países, mas uma questão humanitária no mundo e de respeito ao direito internacional. Se vocês (brasileiros) permitirem um ato de silêncio diante de uma violação de direitos internacionais, futuramente, os resultados não serão bons. Portanto, expressamos os nossos mais sinceros agradecimentos aos países que se sensibilizam com essas questões humanitárias e de direito internacional."

Uso de armas nucleares
"Nós temos uma visão de princípios, mas também uma visão religiosa. Todos os armamentos que resultarem em massacre e em assassinato em massa não fazem parte da doutrina do nosso governo nem da nossa ideologia. Temos um fatwa, que é uma declaração religiosa do nosso Líder Supremo que não autoriza o uso de armas nucleares. Um fatwa é superior a qualquer lei do parlamento ou do governo porque trata-se de um direcionamento religioso. De acordo com essa ideologia, não buscamos equipamentos nem armas nucleares."

Rearranjo da ordem internacional
"Há uma incapacidade das ordens vigentes. Quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas fica em silêncio diante de todos os acontecimentos, o povo no mundo percebe e pergunta se estamos vendo uma desordem mundial. A visão de que essas ordens mundiais são inúteis e ineficazes criarão um problema para a sociedade mundial."

Declínio americano
"Os Estados Unidos estão em declínio, tanto em questões internas, quanto nas políticas internacionais. Creio que o slogan de Donald Trump na sua eleição — 'Primeiro, os Estados Unidos' — mostra essa fraqueza política. Os acontecimentos com os EUA mostram uma falta de diálogo no mundo de hoje. A entrada dos EUA no conflito de forma direta, apoiando um regime criminoso e atacando diretamente um um país independente e soberano, mostra o motivo dessa fraqueza." (RC)

  • Pete Hegseth (E), secretário da Defesa, e o general Dan Caine (D), chefe do Estado-Maior: tentativa de apagar incêndio no governo dos EUA
    Pete Hegseth (E), secretário da Defesa, e o general Dan Caine (D), chefe do Estado-Maior: tentativa de apagar incêndio no governo dos EUA Foto: Andrew Harnik/Getty Images/AFP
  • Abdollah Nekounam Ghadirli, embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil
    Abdollah Nekounam Ghadirli, embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil Foto: Rodrigo Craveiro/CB/D.A. Press
postado em 27/06/2025 05:50
x