Oriente Médio

ONU reconhece fome generalizada em Gaza e cobra ação de Israel

Órgão das Nações Unidas responsável por avaliar a segurança alimentar no planeta estima que 500 mil palestinos vivem "situação catastrófica". Secretário-geral cobra ação imediata de Israel. Premiê Netanyahu fala em "mentira descarada"

Mulheres e crianças palestinas esperam para receber comida de uma cozinha de caridade, em Khan Yunis (sul)  -  (crédito: AFP)
Mulheres e crianças palestinas esperam para receber comida de uma cozinha de caridade, em Khan Yunis (sul) - (crédito: AFP)

Pela primeira vez, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu oficialmente um cenário de fome extrema na Faixa de Gaza e advertiu que 500 mil palestinos — cerca de 23% da população do enclave — enfrentam uma "situação catastrófica". Em um comunicado conjunto à imprensa, a FAO, agência da ONU para agricultura e alimentação; o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); a Organização Mundial da Saúde (OMS); e o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP) alertaram sobre a nova análise da Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC).

Sediado em Roma, o órgão  confirmou que mais de 500 mil pessoas em Gaza estão presas à fome, marcada pela inanição generalizada, miséria e mortes evitáveis. As quatro agências cobraram a "extrema urgência por uma resposta humanitária imediata e em larga escala" e citaram "a escalada de mortes associadas à fome, os níveis cada vez mais piores de desnutrição aguda e a queda acentuada do consumo de alimentos, com centenas de milhares de pessoas passando dias sem ter o que comer".  

De acordo com a ONU, a fome em Gaza é "inteiramente provocada pelo homem" e "poderia ser interrompida e revertida". A IPC assegurou que a população da Cidade de Gaza está atualmente em situação de fome extrema e previu que o fenômeno afetará as regiões de Deir el Balah (centro) e Khan Yunis (sul) até o fim de setembro. Diretor do Escritório para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, pela sigla em inglês) da ONU, Tom Fletcher também garantiu que a situação poderia ter sido evitada, caso as Nações Unidas tivessem permissão para tal. "A comida se acumula nas fronteiras devido à obstrução sistemática de Israel", denunciou. "É uma fome em 2025. Uma fome do século 21 vigiada por drones e pela tecnologia militar mais avançada da história. (...) É uma fome promovida abertamente por alguns líderes israelenses como uma arma de guerra", acrescentou. 

O secretário-geral António Guterres cobrou celeridade da comunidade internacional ante a catástrofe humanitária em Gaza. "Chega de desculpas. A hora de agir não é amanhã — é agora. Precisamos de um cessar-fogo imediato, da libertação imediata de todos os reféns e de acesso humanitário pleno e irrestrito", escreveu nas redes sociais. "Justamente quando parece não haver mais palavras para descrever o inferno em Gaza, uma nova palavra foi adicionada: 'fome'. Isso não é um mistério — é um desastre causado pelo homem, uma acusação moral e uma falha da própria humanidade", lamentou.

Guterres lembrou que a fome não é apenas uma questão de comida, mas do colapso deliberado dos sistemas necessários para a sobrevivência humana. Pessoas estão morrendo de fome. Crianças estão morrendo. E aqueles que têm o dever de agir estão falhando", advertiu. Ele ressaltou que, na condição de potência ocupante, "Israel tem obrigações inequívocas perante o direito internacional, incluindo o dever de garantir alimentos e suprimentos médicos para a população". "Não podemos permitir que essa situação continue impunemente", disse. 

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, desqualificou a declaração da ONU como "uma mentira descarada". "Israel não tem uma política de fome. Israel tem uma política de prevenção da fome", afirmou o chefe de governo, segundo seu gabinete. Israel Katz, ministro da Defesa, ameaçou a destruição da Cidade de Gaza, horas antes da declaração da IPC. "Aprovamos os planos das Forças de Defesa de Israel (IDF) para derrotar o Hamas em Gaza. (...) Em breve, os portões do inferno se abrirão sobre as cabeças dos assassinos e estupradores do Hamas em Gaza, até que eles concordem com as condições de Israel para o fim da guerra, a principal delas a libertação de todos os reféns e seu desarmamento", afirmou. 

Mohammed Hassan Qita, 30 anos, jornalista freelance na Cidade de Gaza
Mohammed Hassan Qita, 30 anos, jornalista freelance na Cidade de Gaza (foto: Arquivo pessoal )

Mohammed Hassan Qita, 30 anos, jornalista freelancer na Cidade de Gaza, contou ao Correio que suas refeições diárias têm se resumido a um pequeno pedaço de pão.  "A ocupação permitiu a venda de queijos e itens que são muito pobres em calorias. Não temos carne nem frango", relatou ao Correio. "Na condição de jornalista, vi o que a palavra 'fome' significa aqui em Gaza. Não se trata apenas de números ou relatórios de ajuda, mas de rostos emaciados, olhos fundos e corpos que perderam a capacidade de ficar em pé", desabafou.

DEPOIMENTO - "É uma arma usada em câmera lenta"

"Nas ruas da cidade, vemos longas filas em frente aos caminhões de ajuda — se eles chegam. As pessoas ficam sob o sol escaldante ou o frio intenso, esperando por um saco de farinha ou uma lata de feijão. Vi crianças comendo capim e mães segurando as lágrimas, enquanto distribuíam um pedaço de pão seco para cinco ou seis bocas pequenas.

Os hospitais são testemunhas da forme. Eles recebem casos não apenas de vítimas dos bombardeios, mas da grave desnutrição: crianças com a pele grudada nos ossos e pais desmaiando de impotência. A visão mais brutal é que a morte não vem mais apenas do céu, mas também dos estômagos vazios. A fome em Gaza não é uma 'crise humanitária passageira'. É uma arma usada em um genocídio em câmera lenta, aos olhos do mundo." 

MOHAMMED HASSAN QITA, 30, jornalista na Cidade de Gaza

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postado em 23/08/2025 05:50
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