
O complexo do Hospital Nasser, em Khan Yunis (sul da Faixa de Gaza), estava tomado pela poeira levantada dos escombros, depois que um tanque israelense disparou contra o prédio, na manhã desta segunda-feira (25/8). Jornalistas, paramédicos e civis foram até o local atacado. Além de documentar mais um ataque, os cinegrafistas e fotógrafos reviravam escombros em busca dos corpos e de eventuais feridos, quando foram surpreendidos por um segundo disparo de tanque. A emissora Al-Ghad transmitiu ao vivo o segundo ataque. O duplo bombardeio matou 20 pessoas, incluindo cinco jornalistas: Hossam Al-Masri, fotógrafo freelancer da agência de notícias Reuters; Mariam Abu Daqqa, repórter freelancer que colaborava com a Associated Press (AP); Moaz Abu Taha, correspondente da emissora americana NBC; Mohamed Salama, fotógrafo da emissora catari Al Jazeera; e Ahmed Abu Aziz, que trabalhava para vários meios de comunicação palestinos. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse "lamentar profundamente o trágico acidente". "Israel valoriza o trabalho de jornalistas, profissionais de saúde e todos os civis", acrescentou.
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A comunidade internacional reagiu com revolta e indignação. Principal aliado de Israel, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que "não está feliz" com o ataque ao hospital. "Não quero ver isso. Ao mesmo tempo, precisamos acabar com esse pesadelo. Fui eu quem resgatou os reféns", disse, em mais uma declaração que parece visar o Comitê Nobel Norueguês — Trump tem se engajado em uma campanha de autopromoção em busca do Prêmio Nobel da Paz. O republicano arriscou um palpite sobre o fim da guerra entre Israel e o movimento fundamentalista islâmico Hamas. "Acho que nas próximas duas a três semanas. Vocês terão um final bm conclusivo", prometeu. "Queremos terminar com isso. Mas tem que terminar sem o Hamas."
"Horrorizado", foi a palavra usada pelo ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, David Lammy. "Os civis, os trabalhadores da saúde e os jornalistas devem ser protegidos", cobrou. Emmanuel Macron, presidente da França, classificou como "intolerável" o ataque a um hospital e pediu a Israel o respeito pelo direito humanitário internacional. "Os civis e os jornalistas devem ser protegidos em todas as circunstâncias. Os veículos de comunicação devem poder exercer sua missão de forma livre e independente para cobrir a realidade do conflito", declarou Macron. O Ministério das Relações Exteriores da Alemanha externou "choque" e cobrou investigação e acesso a Gaza da imprensa estrangeira independente. O Catar condenou "uma série de crimes repugnantes e uma violação flagrante do direito internacional".
A organização não governamental Repórteres sem Fronteiras também condenou nos mais duros termos os asssassinatos. "Até onde irão as forças armadas israelenses em seu esforço gradual para eliminar as informações vindas de Gaza? Por quanto tempo continuarão a desafiar o direito internacional humanitário?", questionou. A entidade lembrou que a proteção de jornalistas é garantida pelo direito internacional e pediu uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Porta-voz do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, Ravina Shamdasani destacou que hospitais e jornalistas não são alvos militares. "O assassinato de jornalistas em Gaza deveria chocar o mundo, não para ficar atônito em silêncio, mas para agir, exigindo responsabilidades e justiça", declarou Shamdasani. Por sua vez, Philippe Lazzarini, diretor da agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA), Philippe Lazzarini, criticou a inação "escandalosa" da comunidade internacional.
As Forças de Defesa de Israel (IDF) demoraram três horas para confirmar o incidente. O chefe do Estado-Maior, general Eyal Zamir, ordenou um inquérito imediato sobre o ataque, mas evitou fornecer detalhes. Por meio de nota, as IDF afirmaram que "lamentar qualquer dano causado a (civis) não envolvidos e que de forma alguma direcionam ataques a jornalistas". O comunicado assegura que o Exército israelense trabalha para "minimizar os danos, enquanto salvaguarda a segurança das tropas".
Mohemmed Abusalama, 28 anos, jornalista da Al-Ghad, contou ao Correio que pretendia iniciar um projeto de trabalho com Mohamed Salama — apesar dos nomes quase idênticos, eles não eram parentes. "Salama não era apenas um colega no jornalismo, mas um amigo de verdade. Ele morava no sul de Gaza, eu vivo na parte ocidental. Há um mês, ele veio até minha casa. Planejávamos filmar histórias de crianças órfãs. Queríamos que o mundo visse os números e a grande quantidade de órfãos em Gaza. Queríamos mostrar o que Israel tem feito — os crimes que cometeu contra as crianças e o assaassinato dos pais delas", explicou.
Ao ser questionado se teme tornar-se estatística da guerra, Mohemmed disse que o medo é um sentimento natural. "Aqui, em Gaza, aprendemos que a vida tornou-se um risco. Uma bala pode matar o corpo, mas não assassinar a mensagem", desabafou. "Como jornalista, sei que posso ser atingido a qualquer momento, mas o que me faz manter meu trabalho é a crença de que minha morte pode ser o preço por revelar a verdade. Se permanecermos em silêncio por medo, a escuridão prevalecerá. Mas, se continuarmos com o nosso trabalho, o mundo ainda terá uma janela para ver o que está acontecendo aqui. Não temo a morte, mas o desaparecimento da verdade."
DEPOIMENTO
"É um ataque direto à verdade"
"Na condição de jornalista, vejo esses crimes como um ataque direto à verdade. Israel sabe muito bem que o jornalista é o olho que mostra ao mundo os crimes e as violações que estão ocorrendo. Quando um jornalista é assassinado, pretende-se que a voz livre silencie, que a imagem seja escondida e que as pessoas permaneçam na escuridão. Eles temem a câmera mais do que a arma, pois uma imagem tem o poder de expor suas mentiras e revelar seus crimes para o mundo. Não é coincidência o fato de atacarem jornalistas; é uma tentativa de silenciar a verdade e deixar as vítimas sem testemunhas. Ainda que meus colegas tenham partido, a mensagem deles viverá, e a verdade permanecerá mais forte do que qualquer bala.
Mohamed Salama era uma pessoa verdadeiramente maravilhosa. Alguém que sempre ajudava a todos. Ele foi bem-sucedido em entregar sua mensagem ao mundo de uma forma muito poderosa. Ele se esforçou muito para transmitir a dor e o sofrimento das pessoas ao mundo, e também expôs os crimes da ocupação israelense ao mundo."
Mohemmed Abusalama, 28 anos, jornalista da emissora palestina Al-Ghad e amigo de Mohamed Salama, morto no bombardeio ao hospital
Os jornalistas mortos
Saiba quem são os repórteres, fotógrafos e cinegrafistas atingidos pelo bombardeio
Mariam Abu Daqqa
Repórter freelancer que colaborava com a Associated Press (AP), doou o rim para salvar a vida do pai. Enviou o único filho, Ghaith, aos Emirados Árabes Unidos, a fim de protegê-lo da guerra. Sua mãe adoeceu e morreu durante o conflito. Mariam perdeu a casa e o equipamento de trabalho.
Moaz Abu Taha
Repórter fotográfico com especialidade em zonas de combate, trabalhava como freelancer. Logo após o bombardeio, foi noticiado que ele fazia parte da emissora americana NBC. A empresa negou a informação.
Mohamed Salama
Fotógrafo da emissora Al-Jazeera, do Catar, preocupava-se com as crianças órfãs de Gaza. Sua última publicação no Instagram foi um vídeo gravado por ele, em que mostrava uma menina, desesperada, chorando a morte do pai. Tinha planos de fazer um documentário sobre o tema.
Hossam Al-Masri
Fotógrafo freelancer da agência de notícias Reuters, dedicava-se a cobrir os efeitos da guerra sobre a população civil e as operações de resgate do Exército israelense. Na internet, publicou um vídeo em que acusava Israel de ter destruído sua casa e tudo o que tinha.
Ahmed Abu Aziz
Trabalhava para vários meios de comunicação palestinos, incluindo o site Middle East Eye. "Se eu morrer, o que você escreveria sobre mim?", perguntou certa vez à editora-chefe Lubna Masarwa. Sofria de dores intensas nas costas, mas fazia questão de seguir reportando a guerra.
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