No segundo aniversário do massacre de 7 de outubro e do início da guerra em Gaza, o presidente dos EUA, Donald Trump, admitiu a "possibilidade real" de colocar em prática o acordo de paz no enclave e insistiu na imediata libertação dos 48 reféns em poder do Hamas. O negociador-chefe do movimento islâmico palestino, Khalil al Hayya, exigiu "garantias de Trump e dos países patrocinadores de que a guerra terminará de uma vez por todas". O Hamas impôs condições para o cessar-fogo: a saída completa das Forças de Defesa de Israel (IDF), junto à libertação do último refém; uma trégua "abrangente e duradoura"; a livre entrada de ajuda humanitária no território; e a supervisão, por parte de um órgão nacional formado por tecnocratas palestinos, do processo de renconstrução. A previsão é de que Steve Witkoff, enviado especial de Trump, chegue hoje ao balneário egípcio de Sharm El Sheikh para participar das negociações indiretas entre Israel e Hamas.
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Por meio de um comunicado, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, prometeu o retorno de "todos os reféns". "Vivemos dias transcendentais, decisivos. Continuaremos atuando para conquistar todos os objetivos da guerra: o retorno de todos os sequestrados, a eliminação do governo do Hamas e a garantia de que Gaza nunca mais represente uma ameaça a Israel", declarou. Nos kibbutzim atacados pelo Hamas em 7 de outubro, moradores prestaram tributo aos 1.200 mortos naquela manhã de sábado. Dorin Rai; o marido, Bijay; e os três filhos voltaram ao kibbutz de Nir Oz para reverenciar as vítimas. "Nós rezamos pelos mortos e pelo retorno dos nove amigos que foram levados de Nir Oz e ainda se encontram em Gaza. Foi um dia muito difícil e triste.
De acordo com Yezid Sayigh— especialista do Carnegie Middle East Center, em Beirute —, o plano de Trump demanda uma retirada militar israelense imediata para uma linhaque atravessa o meio de Gaza, de norte a sul, tão logo a implementação começar. "O Hamas sempre buscou uma retirada completa. O plano de Trump também prevê isso, mas em conjunto com o envio de uma Força Internacional de Estabilização, que também deve ser enviada imediatamente. O plano permite que as forças israelenses permaneçam em uma zona de proteção da fronteira, mas também prevê que elas sairão assim que o órgão governante internacional e a Força de Estabilização garantirem que não haja mais ameaças de Gaza", explicou à reportagem.
Sayigh vê um ponto crítico no plano de Trump. "Da perspectiva israelense, a proposta americana coloca a Faixa de Gaza sob tutela e proteção internacional e promete liberdade de movimento para a população, além de acesso quase livre e completo aos mercados internacionais, fontes de crédito e capital, com o objetivo depermitir a reconstrução e a recuperação econômica de Gaza", lembrou. Ante o reconhecimento do Estado da Palestina pela maioria dos países, o especialista vê como lógico que a comunidade internacional considere Gaza oprimeiro território 'libertado' do Estado da Palestina. "Ela concentrará sua pressão no fim da ocupação militar israelense da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, para que essas áreas também possam se tornar parte do Estado palestino. Prevejo que esta seja a verdadeira ameaça para Netanayhu e seus aliados de extrema-direita, e ele certamente sabotará o cessar-fogo e o plano de Trump o mais rápido possível", advertiu.
Desde 17 de novembro de 2023, o palestino Mkhaimar Abusada — professor de ciência política da Universidade Al-Azhar (na Cidade de Gaza) — vive como refugiado no Egito. Ele contou ao Correio que os dois anos de guerra têm sido muito dolorosos para ele a família. "Além de ter deixado Gaza, perdi dois sobrinhos e muitos parentes", disse. De acordo com Abusada, o plano de Trump prevê que as tropas das Forças de Defesa de Israel (IDF) se retirem para a Linha Amarela, do lado de fora das cidades palestinas. Por isso, não vê a demanda do Hamas de retirada militar concomitantecom a libertação do último dos 48 reféns como uma mudança drástica. "O principal problema é que o Hamas pede uma retirada militar completa da Faixa de Gaza, mas o plano de Trump fala em uma desocupação gradual. Além disso, o Hamas teme que, depois de libertar os reféns, Israel possa voltar e não se comprometer com o cessar-fogo", comentou.
Quanto à libertação de prisioneiros, ele lembrou que mais de 250 palestinos cumprem pena perpétua em centros de detençã israelenses. "O Hamas insiste nos nomes de comandantes do próprio movimento, do Fatah e da Frente Popular para a Libertação da Palestina. A questão é que Israel tem o poder de veto sobre quem será ou não solto. O Hamas também quer a libertação de integrantes do Nukhba, sua força de elite, que participaram dos ataques de 7 de outubro. Israel se nega a fazê-lo."
Analista da Fundação pela Defesa das Democracias e ex-porta-voz internacional das IDF, o israelense Jonathan Conricus admitiu ao Correio que o Hamas está "enfraquecido". "Eles estão destituídos de importantes capacidades estratégicas e ofensivas. Foram expostos pela derrota no campo de batalha.Infelizmente, ainda têm reféns em seu poder, e essa é a últimainfluência que detêm. O eixo do mal do terror, liderado pelo Irã, também está debilitado, como resultado direto do ataque do Hamas ao sul de Israel, dois anos atrás", observou.
Conricus acredita que o Hamas terá a chance de escolher entre se poupar — e poupar o futuro dos palestinos e da Faixa de Gaza — ou lutar até um "futuro mais amargo". "Hamas é um movimento, uma ideologia, uma ideia que continuará a existir. São parte da Irmandade Muçulmana. Como uma ideia, não acho que o Hamas deixará de existir. Mas, no terreno, como força militar e governo político de Gaza, é o fim do Hamas. Levará mais tempo, educação e infraestrutura para eliminar o movimento", afirmou.
Sem arrependimento
Questionado pelo Correio se o Hamas se arrepende do 7 de outubro, Mahmoud Mardawi, um dos líderes do movimento islamita palestino e membro do Comitê Político, negou. "Nosso povo exerceu seu direito natural — após décadas de massacres, perseguições e assédios — de resistir à ocupação que lhe foi imposta, geração após geração.Não fomos à América do Sul ou do Norte, nem à África, para lutar contra os sionistas. Em vez disso, foram eles que ocuparam nossa terra, mataram nossas crianças e mulheres e destruíram os alicerces de nossa pátria", disse.
Segundo Mardawi, os "desastres polítcos e humanitários causados pela ocupação são mais profundos e extensos do que se pode mensurar"."Nossa luta sempre teve como objetivo pôr fim à agressão e chegar a um acordo que traga paz duradoura ao nosso povo após sofrimento prolongado. Partimos de um senso de responsabilidade que coloca os interesses do povo palestino acima de todas as outras considerações, sem recuar em nossos princípios nacionais ou em nosso legítimo direito à autodefesa", acrescentou.
TRÊS PERGUNTAS PARA
MAHMOUD MARDAWI, um dos líderes do movimento islamita palestino Hamas e membro do Comitê Político
Como avalia o plano de Trump?
Agradecemos qualquer esforço que vise pôr fim à guerra e aliviar o sofrimento de Gaza. Mas, enfatizamos que qualquer solução real deve basear-se na cessação permanente das hostilidades, na retirada total, no levantamento do bloqueio e na garantia do direito do nosso povo à autodeterminação. Quaisquer acordos que excluam as forças de resistência do processo político ou que mantenham o controle direto ou indireto de Israel ou de outros países são inaceitáveis, exceto no que diz respeito à coordenação, ao apoio e à assistência de países árabes, islâmicos e amigos.
Quando soltarão os reféns?
Estamos comprometidos com o princípio de uma troca simultânea, no âmbito de um acordo abrangente que garanta o fim da guerra, o início da retirada e a prestação de garantias reais para a implementação do plano de paz. Assim que esses entendimentos estiverem estabelecidos em campo, estaremos preparados para começar a implementar imediatamente os acordos de troca.
Quais objeções o Hamas tem às propostas dos EUA?
Temos reservas quanto à soberania palestina, ao futuro de Gaza e à sua conexão geográfica e política com a Cisjordânia como unidade única. É uma questão nacional palestina, que deve ser resolvida por consenso entre as facções palestinas. Nossas preocupações incluem a ausência de garantias vinculativas para uma retirada total, o levantamento do bloqueio e a reconstrução de Gaza. Rejeitamos qualquer tentativa de impor tutela externa ou excluir forças nacionais. (RC)
JONATHAN CONRICUS, analista da Fundação pela Defesa das Democracias e ex-porta-voz internacional das Forças de Defesa de Israel (IDF)
Como o senhor vê a possibilidade de implementação do cessar-fogo?
A possibilidade inicial de implementação do cessar-fogo é positiva. As chances são altas de que isso ocorra, pois o Hamas começará a libertar os reféns. Minha preocupação é a de que, em algum ponto do processo, eles mintam e deem desculpas para não prosseguir com as entregas dos reféns vivos e assassinados. Isso significará o fim do cessar-fogo e o prosseguimento dos combates. O tema aqui é o quanto de pressão o Catar e o Egito exercerão sobre o Hamas.
Quais os pontos sensíveis do plano?
Se o Hamas continuar a insistir na libertação de terroristas que participaram do massacre de 7 de outubro de 2023, as chances de isso acontecer serão muito baixas. Isso pode levar ao fim do cessar-fogo. Tenho sérias dúvidas se o Hamas concordará em se desarmar. Mesmo que diga que vá se desarmar, as chances de isso ocorrer são reduzidas. Um desarmamento é muito difícil de ser implementado e verificado. Não tenho certeza de alguém tenha a avaliação correta sobre quantas armas o Hamas possui. Talvez o mais importante seja a desradicalização de Gaza. Isso precisa ser esmiuçado. Se não a desradicalizarmos, teremos que lutar outra guerra com outra organização terrorista.
Como avalia o impacto da guerra sobre o Hamas?
A guerra impactou o Hamas em níveis distintos. O Hamas é entendido pelos árabes como um grupo que trouxe destruição, desespero, pobreza e humilhação aos palestinos em todos os lugares, especialmente em Gaza. Eles estão sendo expostos pelo que são: um culto jihadista à morte, que não promove as necessidades dos palestinos. (RC)
