ARTIGO

A transfobia ameaça a própria razão de existir do esporte

A decisão de banir atletas trans nos Jogos Olímpicos de 2028, nos EUA, não é apenas um retrocesso doméstico: é um ataque aos princípios universais que sustentam a dignidade humana

opiniao 0809 -  (crédito: kleber sales)
opiniao 0809 - (crédito: kleber sales)

MICHEL PLATINI, tradutor de Libras, presidente do Estruturação — Grupo LGBT+ de Brasília e do Centro Brasiliense de Defesa dos Direitos Humanos do Distrito Federal (Centro DH)

Três decisões recentes estremeceram as bases do esporte mundial e revelaram a fragilidade de instituições como a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional (COI) diante de disputas jurídicas e políticas globais. A ação coletiva de mais de 100 mil atletas contra a Fifa na Justiça holandesa, a permissão da Corte Europeia para revisar decisões do Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) e, sobretudo, a proibição da participação de atletas trans nos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028, decretada pelo governo americano, mostram que o esporte não pode mais se esconder atrás do mito da autorregulação. Ele precisa se reposicionar diante de uma realidade em que os direitos humanos e a dignidade das pessoas devem estar no centro.

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O caso dos atletas trans é emblemático. Nos Estados Unidos, país que será sede dos Jogos, a violência contra a população trans é alarmante. Relatórios de organizações internacionais colocam os EUA entre os países com maiores índices de violência transfóbica no Ocidente. A exclusão de atletas trans, ao invés de ser apenas uma decisão esportiva, carrega um efeito pedagógico perverso: em uma sociedade já marcada pela transfobia, reforça estigmas, legitima preconceitos e dá a chancela institucional para que corpos dissidentes sejam tratados como indignos de reconhecimento. O esporte, que deveria ser motor de transformação social, acaba funcionando como espelho de uma sociedade excludente.

É preciso dizer com todas as letras: o silêncio da Fifa e do COI diante dessa política transfóbica é cúmplice. Não basta proclamar slogans de diversidade em campanhas publicitárias e se calar quando direitos fundamentais são violados. O esporte é um patrimônio cultural da humanidade e, como tal, deve assumir posição nítida contra toda forma de discriminação. Não fazê-lo é abdicar do papel civilizatório que lhe foi historicamente atribuído.

Nesse contexto, é preciso frisar que Donald Trump não pode impor o seu atraso civilizatório para toda a humanidade. A decisão de banir atletas trans nos Jogos de 2028 não é apenas um retrocesso doméstico: é um ataque aos princípios universais que sustentam a dignidade humana. O mundo precisa reagir, pois o impacto dessa medida vai além das fronteiras dos Estados Unidos. Ao naturalizar a exclusão em um dos maiores eventos esportivos do planeta, abre-se um precedente perigoso que ameaça corroer conquistas históricas de igualdade.

A história nos mostra que o esporte pode ser instrumento de libertação. Basta lembrar do movimento paralímpico, que, desde sua origem, foi fundamental para desconstruir a visão capacitista enraizada em nossas sociedades. Ao colocar pessoas com deficiência em evidência, celebrando suas conquistas e reafirmando suas potencialidades, os Jogos Paralímpicos contribuíram para desafiar estereótipos, influenciar legislações e inspirar políticas públicas mais inclusivas. Se foi possível romper paradigmas em relação à deficiência, por que o mesmo não pode ocorrer com a diversidade de identidades de gênero? O que está em jogo não é apenas a participação em uma competição, mas o direito de existir em igualdade.

Não podemos esquecer que normas e tratados internacionais são claros. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e os Princípios de Yogyakarta (2006) reforçam a proibição de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Mais recentemente, a própria Agenda 2030 da ONU inclui, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 5 e ODS 10), o compromisso de reduzir desigualdades e promover a igualdade de gênero em todas as esferas, inclusive no esporte. A decisão norte-americana de banir atletas trans vai na contramão dessas obrigações internacionais.

O esporte, portanto, não pode ser tratado como uma ilha isolada da sociedade. Ele é reflexo e, ao mesmo tempo, força transformadora do tecido social. Quando aceita ou silencia diante da transfobia, legitima práticas discriminatórias que se irradiam para fora dos estádios e quadras. Quando enfrenta o preconceito, tem a potência de educar, sensibilizar e abrir caminhos para uma convivência mais justa.

Por isso, é urgente que a Fifa, o COI e todas as organizações esportivas globais assumam postura firme contra políticas excludentes. Não se trata apenas de garantir o direito de competir; trata-se de afirmar que o esporte pertence a todas as pessoas, em sua diversidade. Ele precisa refletir a pluralidade da sociedade, pois, só assim, cumprirá sua verdadeira função: a de ser espaço de acolhimento, solidariedade e mudança de trajetórias.

O futuro do esporte será definido pelas escolhas feitas agora. Se optar pela omissão, será lembrado como cúmplice da exclusão. Se escolher a diversidade, poderá reafirmar-se como ferramenta poderosa de emancipação humana. Que o exemplo paralímpico inspire o movimento olímpico e o futebol mundial: o verdadeiro espírito esportivo não exclui, não discrimina, não se curva a decretos autoritários. Ele acolhe, integra e transforma.

 


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Por Opinião
postado em 08/09/2025 04:00
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