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Quando a reforma do setor elétrico contradiz a crença do presidente

Ao manter o mecanismo de subsídios cruzados, o MME deixou de considerar a possibilidade de destinar esses recursos à aquisição de kits solares para essas famílias.

O projeto de lei que institui o Paten segue para apreciação do Senado -  (crédito: Reprodução/Freepik)
O projeto de lei que institui o Paten segue para apreciação do Senado - (crédito: Reprodução/Freepik)

HEBER GALARCE, presidente do Instituto Nacional de Energia Limpa (INEL)

Em diversas ocasiões, o presidente Lula tem repetido uma ideia simples e poderosa: "muito dinheiro na mão de poucos significa miséria; pouco dinheiro na mão de muitos significa riqueza". A frase traduz sua crença de que a prosperidade nacional depende da circulação de renda e da inclusão social.

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Aprovada na Comissão Mista do Congresso Nacional, a Medida Provisória nº 1.300/2025, que reforma o setor elétrico, avança em alguns pontos relevantes, mas, em outros aspectos, caminha na contramão desse princípio. Embora o relatório do deputado Fernando Coelho Filho apresente méritos técnicos, o processo conduzido pelo Ministério de Minas e Energia (MME) reforçou a lógica centralizadora do setor e deixou de avaliar alternativas mais transformadoras.

É inegável a importância da ampliação da Tarifa Social de Energia, que garantirá descontos a milhões de famílias em situação de vulnerabilidade. Trata-se de um alívio imediato, que responde a uma demanda da população de baixa renda. Entretanto, ao manter o mecanismo de subsídios cruzados, o MME deixou de considerar a possibilidade de destinar esses recursos à aquisição de kits solares para essas famílias. A alternativa representaria mais do que um benefício temporário: daria autonomia energética, reduziria permanentemente as contas de luz e entregaria ativos às famílias. Ou seja, traduziria de forma prática a crença presidencial.

Ao reforçar subsídios e centralizar decisões, a MP deixou em segundo plano a geração distribuída (GD), modelo em que consumidores instalam painéis solares nos telhados de suas casas para produzir a própria energia para consumo e injetam o excedente na rede reduzindo custos. Justamente a política pública mais capaz de democratizar a produção. A GD cria empregos, atrai investimentos, reduz perdas no sistema e coloca nas mãos de milhões de brasileiros o poder de produzir sua energia. É a materialização do conceito de "pouco dinheiro na mão de muitos". Ainda assim, essa agenda transformadora não foi incorporada com o devido protagonismo.

A tramitação da MP expôs fragilidades institucionais. A forma acelerada da condução comprometeu a qualidade do debate, reduziu as oportunidades de construção de consensos e ameaçou a segurança jurídica. O Instituto Nacional de Energia Limpa (Inel) tem alertado que alterações estruturantes no setor não podem ser decididas em ritmo incompatível com sua complexidade. Uma reforma dessa magnitude exige planejamento, participação social e clareza regulatória.

Outro ponto é a coerência da política energética com os objetivos estratégicos do país. O Brasil tem a chance histórica de se consolidar como líder global em energias renováveis, atraindo cadeias de valor ligadas ao hidrogênio verde, uso de baterias e à expansão da energia solar. Para isso, é indispensável um ambiente regulatório que estimule a descentralização, a inovação e a confiança dos investidores.

A centralização excessiva, isto é, a concentração da geração em grandes usinas e decisões em poucas instituições, em detrimento de um modelo que utiliza e valoriza as inovações tecnológicas e empodera o consumidor, provoca gargalos, aumenta o risco regulatório e reforça a dependência de um modelo já limitado.

É possível que não tenha chegado com clareza ao presidente a dimensão desse alinhamento entre sua crença e o papel estratégico da descentralização no setor. A GD é a tradução prática da ideia de "pouco dinheiro na mão de muitos". Não há dúvida de que, se esse vínculo tivesse sido apresentado de forma adequada, o próprio presidente não permitiria que a condução da MP tendesse o caminho de concentração que acabou prevalecendo.

O que se observa, portanto, é um ruído entre o discurso político, que aponta para descentralização e inclusão, e uma política energética que manteve um modelo obsoleto de centralização como eixo estruturante. Esse descompasso precisa ser corrigido. O Brasil não pode perder a oportunidade de alinhar sua transição energética a um projeto de desenvolvimento que seja, ao mesmo tempo, socialmente inclusivo, economicamente dinâmico e ambientalmente sustentável.

A MP 1300 ainda pode ser ajustada no processo legislativo. Cabe ao Congresso Nacional ouvir a sociedade, corrigir os equívocos e abrir espaço para políticas públicas que coloquem a geração distribuída e a energia solar como protagonistas. Essa é a verdadeira forma de materializar, no setor elétrico, a crença que o presidente Lula tantas vezes proclamou: enriquecer o país ao colocar riqueza e poder na mão de muitos.

 


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Por Opinião
postado em 11/09/2025 04:03 / atualizado em 11/09/2025 14:54
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