
Cecília Bizerra Sousa — jornalista, servidora pública federal e integrante da Cojira-DF
A servidora pública, ativista e economista negra Roseli Faria nos deixou há alguns dias, em meados de setembro, no ápice da temporada dos ipês e da seca brasiliense. Radicada em Brasília desde 2011, ela partiu precocemente, aos 54 anos, vítima de um câncer. Uma mulher ousada, aguerrida, generosa. Filha da classe trabalhadora brasileira, com trajetória acadêmica e profissional brilhantes, nunca se conformou em brilhar sozinha. Seu caminhar era coletivo, e, sempre que podia, abria caminhos, criava interações, enxergava oportunidades e inventava possibilidades.
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Veio a Brasília para compor uma das carreiras mais prestigiadas do Executivo, a de analista de planejamento e orçamento, depois de ter passado pelo mercado financeiro, por multinacionais, e até pela experiência de ter a própria empresa. Embora sua ousadia e brilhantismo tenham, por óbvio, impactado sua trajetória individual, nunca vi Roseli sozinha, e era isso que mais me chamava a atenção nela. Era brilhante em uma área que poucas de nós transitamos, mas, repito, parecia não se conformar em brilhar sozinha. Tinha aquela inquietude dos que sonham em ver um mundo mais justo e equânime; dos que creem que, "se não tá bom pra todo mundo, não tá bom pra ninguém", e se empenhava bravamente em mudar a realidade. Foi entusiasta, formuladora e executora de políticas sociais, especialmente de promoção da igualdade racial e de gênero. Seu foco era a inclusão desses públicos no orçamento — elemento fundamental de sucesso de qualquer política pública.
Eu não era íntima de Rose. Mas a chamava de Rose porque tínhamos muitos amigos em comum, e porque sei que havia carinho e admiração mútuas — daquelas coisas que não são verbalizadas, mas que a gente sente. Creio que sermos mulheres negras vindas das bases que sustentam esse país e estarmos dentro da gestão pública foi um propulsor dessa conexão. Ter o sonho vivo e seguir na luta por igualdade dentro de uma institucionalidade que se esforça para manter o estado das coisas distinto daquele com o qual sonhamos e pelo qual lutamos é tarefa difícil, por vezes inglória. Mas Roseli foi brilhante também nessa tarefa.
Como disse, eu não era íntima de Rose. Não tinha sequer uma foto com ela para postar nas redes sociais no dia de sua partida. Mas senti muito sua morte, o que é mais um indicativo de sua relevância e grandeza nesse mundo. Felizmente, nos seus momentos finais, pude me despedir e agradecer. Pude dizer que inspirou, abriu caminhos, foi generosa com outras mulheres negras, contribuiu com grandes conquistas para a população negra brasileira, como a revisão da Lei de Cotas. Agradeci.
Agradeço também à amiga Clara Marinho, muito próxima de Rose, e economista negra com sonhos e propósitos semelhantes aos seus — na administração pública e além dela — e que, certamente, manterá seu legado vivo. Clara incentivou-me a levar essas palavras de amor e gratidão à Rose em seus momentos finais "porque o reconhecimento das pessoas negras diante do que ela fez para as pessoas negras precisa ser reforçado. Nós, mulheres negras na gestão pública, não podemos ser invisíveis para nós mesmas", disse.
Deixei de lado a relutância que nutria por sentir que estaria invadindo um espaço de intimidade e fui. E foi tão importante ter ido. Lembro ainda vividamente daqueles olhos grandes e firmes enquanto eu falava. Lembro da risada que deu quando disse que ela cumpriu honrosamente sua missão neste plano, que podia partir com aquela sensação gostosa de quando a gente dá check em todos os itens de uma longa lista de tarefas.
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Em seus momentos finais, Rose mobilizou afetos, presenças, olhares e abraços amorosos. No ritual de despedida, mesmo em meio à correria de uma semana emblemática para o país, em que passado e presente se encontraram para afirmar que não haverá anistia para aqueles que atentarem contra a democracia, a liberdade e os direitos do povo brasileiro, ela mobilizou presença e bem-querer. Rose também mobilizou palavras de homenagem e respeito: de autoridades, organizações sociais e até mesmo do presidente da República.
Por fim, Rose também foi homenageada na plenária final da V Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que ocorreu de 15 a 19 de setembro em Brasília, e reuniu cerca de 2 mil pessoas para discutir, logo após sua passagem, as políticas que eram seu maior anseio. Descanse em paz, Rose. Você deu check em todas as tarefas. Por aqui, seguimos, agora nos preparando para a 2ª Marcha de Mulheres Negras, em novembro próximo. Por você e por tantas outras... Pelas que foram e pelas que virão. Seguimos em marcha!
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