
O transporte coletivo no Entorno do Distrito Federal é um daqueles problemas que todos conhecem, muitos sofrem e poucos parecem dispostos a resolver. Milhares de trabalhadores que vivem em cidades como Valparaíso, Luziânia e Águas Lindas acordam de madrugada, enfrentam longas filas, ônibus superlotados, veículos sem ar-condicionado e tarifas cada vez mais altas para conseguir chegar ao trabalho em Brasília. É um roteiro previsível e repetido diariamente, quase como se a precariedade fosse parte do serviço.
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A responsabilidade legal por esse sistema não é um mistério: está nas mãos do Governo Federal, por meio da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a quem cabe regular o transporte semiurbano interestadual. É, portanto, a União — e não estados ou municípios — quem tem a caneta e a obrigação de transformar essa realidade. Curiosamente, no entanto, ela parece preferir usar a caneta para assinar discursos do que para firmar compromissos concretos.
Um exemplo eloquente dessa escolha é a decisão do Governo Federal de não integrar o Consórcio Interfederativo proposto pelos governos de Goiás e do Distrito Federal. A iniciativa buscava justamente compartilhar a gestão do sistema, viabilizar subsídios e impedir novos aumentos tarifários. O objetivo era claro: corrigir distorções históricas e criar as bases de um modelo mais justo e eficiente.
Mas a resposta de Brasília foi um sonoro "não". Ou melhor, um silêncio prolongado seguido de uma negativa burocrática, disfarçada de tecnicismo. A União preferiu não participar do consórcio — talvez por receio de assumir responsabilidades concretas ou, quem sabe, por não querer abrir precedentes de subsídio federal. Afinal, intervir de forma prática custa caro e envolve escolhas difíceis. Muito mais fácil é manter tudo como está e deixar a conta no bolso de quem precisa pegar dois ônibus por dia para trabalhar.
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Ao mesmo tempo, e aqui o roteiro beira a comédia política, o mesmo Governo Federal passou a defender com entusiasmo a criação de uma Tarifa Zero nacional. A proposta, anunciada com pompa e projeções otimistas — algumas sugerindo até um ganho anual de mais de R$ 2 mil por trabalhador —, promete revolucionar a mobilidade urbana no Brasil. É uma ideia bonita, quase poética: transporte gratuito, mais renda no bolso e inclusão social.
O problema é que, enquanto se fala em gratuidade para todo o país, a União não consegue sequer impedir aumentos tarifários no único sistema que está diretamente sob sua responsabilidade. Entre 2023 e 2025, a ANTT autorizou reajustes de 12%, 15% e, mais recentemente, 2,9%, sem oferecer qualquer contrapartida de subsídio ou melhoria estrutural. A conta, mais uma vez, recaiu sobre o trabalhador — justamente aquele que, nos discursos, seria o principal beneficiário da política de tarifa zero.
Essa contradição não é apenas retórica. Ela expõe uma incoerência profunda entre o que o Governo Federal diz e o que efetivamente faz. De um lado, recusa-se a participar de uma solução concreta e imediata para um problema real e urgente. De outro, vende um projeto grandioso e abstrato que, sem resolver o que está diante dos olhos, corre o risco de não sair do papel. É como propor um programa espacial enquanto não há sequer ônibus funcionando direito para levar as pessoas ao trabalho.
Se o objetivo for provar que a Tarifa Zero é viável, coerente e socialmente transformadora, o caminho mais lógico — e honesto — seria começar por onde a responsabilidade da União é direta e incontestável: o transporte semiurbano do Entorno do Distrito Federal. Ali estão reunidos todos os desafios que a política pretende enfrentar: baixa renda, dependência do transporte coletivo, alta demanda e falta crônica de subsídio.
Transformar o Entorno no projeto-piloto da tarifa zero nacional não seria apenas um gesto simbólico de coerência política, seria uma demonstração concreta de que o discurso pode virar prática. Mais do que isso, seria um sinal de que o Governo Federal está disposto a enfrentar a complexidade da mobilidade urbana brasileira não com slogans e promessas, mas com ação real e responsabilidade institucional.
Afinal, se a União realmente acredita que o transporte gratuito é o futuro do país, não há lugar melhor para começar do que no presente caótico do Entorno do DF. É ali, no calor dos ônibus lotados e no peso da passagem no bolso do trabalhador, que a política pública deixa de ser teoria — e se torna transformação.
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