
ISABEL AMORIM, superintendente do Ecad
O debate sobre a necessidade de o Brasil regulamentar o uso da Inteligência Artificial (IA) generativa se materializa no Projeto de Lei 2.338/23, em tramitação na Câmara dos Deputados depois de aprovado no Senado. Esse é um passo essencial para o país acompanhar o que ocorre em âmbito global sobre avanço e impacto da IA nas diferentes áreas do conhecimento, especialmente na atividade econômica. Com características diferentes entre os países, a busca pela regulamentação da IA não pode deixar de lado um tema central para a economia criativa: a proteção dos direitos autorais, por mais complexo que isso possa parecer.
No campo da música, a IA foi construída a partir de dados que incluem canções, melodias e letras protegidas por direitos autorais. Essas obras, criadas pelos artistas, foram utilizadas, sem o consentimento deles, para "ensinar" a IA a produzir novos conteúdos. Ou seja, a criatividade humana serviu de base para a inteligência das máquinas.
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Por isso, discutir mecanismos de "opt-out", em que os criadores poderiam pedir a retirada de suas obras de bancos de dados, não faz mais sentido. Os modelos de IA já foram treinados com repertórios musicais, e o aprendizado obtido a partir deles não pode ser desfeito. A questão não é mais se as obras serão usadas, mas como garantir reconhecimento e remuneração aos criadores que contribuíram involuntariamente para o avanço tecnológico.
Recentemente, a sociedade alemã de gestão coletiva GEMA obteve uma vitória na Justiça da Alemanha contra a OpenAI, criadora do ChatGPT. A empresa violou direitos de compositores ao usar letras e melodias protegidas por direitos autorais para treinar a IA. A decisão abre precedente importante para a indústria musical. Esse modelo de negócio não pode se impor às leis que regem o mercado da música no Brasil.
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Outra recente decisão, desta vez do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, indica que a Justiça brasileira não permitirá que interesses econômicos das empresas desenvolvedoras de IA avancem sobre os direitos autorais. O TJ decidiu a favor do Ecad ao confirmar sua legitimidade para cobrar direitos autorais de um parque temático em Pomerode, no Vale do Itajaí, que utilizou IA para sonorizar ambientes. A decisão reforça que a cobrança se aplica a qualquer execução pública de música, independentemente da forma ou origem da obra.
O Ecad e a gestão coletiva da música acreditam que a inovação tecnológica e a proteção autoral devem caminhar juntas, e que o Brasil tem a oportunidade de se tornar referência mundial ao propor uma legislação que reconheça o valor da criação musical na economia digital. Defendemos regras claras que garantam os direitos de quem vive da música, por isso tomamos medidas concretas para preservar os direitos dos artistas. Desde julho passado, é exigido que os artistas informem se usam IA na criação de suas músicas, se o uso foi total ou parcial, especificar plataformas acessadas e incluir os prompts (instruções dadas aos sistemas de IA no processo criativo). As informações passam a integrar o cadastro musical e são de responsabilidade do autor. Dados incorretos ou omissões podem gerar consequências legais, conforme legislação civil e penal em vigor.
Com o procedimento, será possível identificar corretamente as obras, garantir a remuneração dos artistas e evitar que o uso indevido da tecnologia prejudique quem vive da criação musical. Foi criado um Comitê de Análise Cadastral para investigar possíveis fraudes e inconsistências nos registros. A gestão coletiva de música também implantará mecanismos de monitoramento e bloqueio de cadastros suspeitos, especialmente os que apresentem indícios de uso irregular de IA ou de montagens não autorizadas. Também estamos ampliando parcerias com plataformas digitais para coibir práticas que possam violar os direitos autorais.
A manutenção dos direitos dos artistas, autores e compositores brasileiros precisa constar da legislação atualmente em discussão no Congresso. Afinal, cada nota e cada melodia que a IA "aprende" é fruto do trabalho de gerações de artistas. Na música, cada criação tem alma, história e autoria que devem ser reconhecidas e justamente remuneradas.

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