
Assisti, nesta última semana, ao documentário “Caso Eloá — Refém ao Vivo”, lançado recentemente pela Netflix, que revisita o sequestro e assassinato da adolescente Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos, em 2008. Os registros dessa tragédia, da atuação desastrosa da polícia à cobertura vergonhosa da imprensa, são de embrulhar o estômago.
Criança, à época do crime, acompanhei pela tevê seus desdobramentos e muitas daquelas imagens ficaram guardadas por anos em minha memória. No dia em que o sequestro teve fim, veja só, era meu aniversário. Lembro-me de estar na sala de casa com a família reunida quando a notícia tomou conta de todos os canais.
Era curioso observar como os adultos opinavam sobre o caso com o furor e a segurança típicos de uma partida de futebol. E para além das críticas feitas (de novo) à operação do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) — do qual o governo de São Paulo se vangloriava por ser a polícia mais preparada do país —, os comentários não pouparam julgamentos à própria vítima. “Afinal, o que uma menina de 15 anos fazia com um rapaz de 22? O que ela esperava de um relacionamento como este?”.
Os discursos propagados pela mídia reforçavam, claro, essa perspectiva, mas o espetáculo da violência contra a mulher, em vários outros contextos, sempre foi assistido e comentado também fora das telas. Às vezes, virava fofoca no bairro. Ainda criança (e, aqui, peço licença para recorrer novamente às minhas memórias), recordo-me de presenciar, pelo portão da casa de minha avó, um tumulto na residência da frente. Um homem havia esfaqueado a companheira no rosto.
Vizinhos e pessoas que sequer conheciam aquela mulher entraram em sua casa, não para ajudá-la, mas para ver seu rosto ensanguentado. Apenas para assistir e comentar. “Ih, ficou desfigurada”, ouvia-se de alguns. No caso de Eloá, chama a atenção que, em seu velório, tenha sido contabilizado um público de cerca de 40 mil pessoas.
“Por que 40 mil pessoas queriam ver o cadáver de uma menina? Eram espectadores que, instigados pela televisão, esperavam assistir ao final de uma novela. Ao vivo”, avaliou a ativista Elisa Gargiulo no, muitíssimo bem feito curta-metragem “Quem Matou Eloá?”, lançado em 2015 e disponível no YouTube. Neste documentário, quatro mulheres — uma defensora pública, uma professora e duas ativistas — refletem, não apenas a respeito da sequência de erros dentro do caso, mas também sobre a culpabilização das vítimas pela sociedade.
Em 2015, aliás, foi promulgada a Lei do Feminicídio, que tipificou o assassinato de mulheres por razões de gênero e aumentou as penas para o crime. De fato, foi um marco. Mas ainda falta muito para além da legislação. Um exemplo recente se deu quando noticiamos o assassinato de Allany Fernanda, 13 anos, baleada na cabeça no início deste mês. O caso, investigado inicialmente como feminicídio, provocou uma onda de comentários nas redes sociais que se voltaram, mais uma vez, contra a vítima. “O que uma menina de 13 anos fazia com um rapaz de 20?”.
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A luta contra as diferentes manifestações de violência contra a mulher deve ser constante e conjunta, inclusive, entre nós, jornalistas. Não por acaso, o curta-metragem sobre Eloá é recomendado ainda hoje em aulas de ética na comunicação. Em um artigo acerca do tema escrito para o projeto de extensão SOS Imprensa, em 2019, finalizei o texto dizendo que, diante dos gritos de socorro, as mulheres seriam capazes de, juntas, provocarem mudanças neste contexto. Foi um engano, o qual, agora, retifico. A responsabilidade é de todos.

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