
CARLOS ANTÔNIO VIEIRA FERNANDES, presidente da Caixa Econômica Federal
Voltar a Celso Furtado é sempre um exercício de desconforto produtivo. Em Formação econômica do Brasil, ao analisar os fundamentos da ocupação territorial, ele descreve como o acordo militar anglo-português, firmado após a separação de Portugal da Espanha, garantiu segurança política, mas consolidou a dependência econômica. O ouro brasileiro, extraído em abundância, serviu muito mais ao desenvolvimento inglês do que ao português. Essa leitura, situada no século 17, ecoa no Brasil do século 21. A pergunta que se impõe é inevitável: até que ponto ainda carregamos os padrões de dependência inaugurados naquela época? A resposta não é trivial — e tampouco reconfortante.
- Leia também: A dengue se alimenta do que deixamos de fazer
Furtado insistia que o subdesenvolvimento não é atraso: é estrutura. Estruturas sobrevivem a governos, ciclos econômicos e até rupturas políticas. O Brasil, mesmo após industrialização e urbanização, ainda opera sob três traços profundos da velha dependência colonial: especialização em produtos primários, em detrimento da indústria de alta complexidade; baixa densidade tecnológica, que nos obriga a importar o que há de mais avançado; incapacidade de reter e direcionar o excedente, convertido em remessas, royalties e pagamentos de tecnologia. É a lógica do centro e da periferia traduzida em linguagem contemporânea.
No século 21, a dependência já não se organiza em tratados como o Methuen. Ela se manifesta em mecanismos discretos, porém mais sofisticados. Quem controla chips, nuvens, sistemas operacionais e inteligência artificial controla mercados e decisões estratégicas, e o Brasil permanece mais consumidor do que produtor. Seguimos presos a uma arquitetura financeira global que remunera o capital externo de forma assimétrica e condiciona políticas públicas. Nossos dados, matéria-prima da economia digital, alimentam sistemas desenvolvidos fora, cujo valor raramente retorna proporcionalmente ao país. Essas amarras são menos visíveis que os navios no porto, mas não menos determinantes.
- Leia também: A notícia, a canoa e a amizade
Há ainda o elemento psicológico, que Furtado chamava de colonização mental: a crença de que o desenvolvimento virá "de fora". Portugal acreditava na Inglaterra. O Brasil já acreditou na Europa, nos Estados Unidos, no Japão. Hoje, acredita na Ásia e nas big techs. Essa expectativa recorrente produz imobilismo: investimos pouco em nossa capacidade tecnológica e excessivamente em importar soluções prontas. A dependência, portanto, não é apenas econômica — é cultural.
A frase de Furtado permanece atual: "Uma parceria política pode criar uma dependência econômica estrutural se o país periferizado não controla seu excedente nem sua capacidade tecnológica." Substitua "parceria política" por contrato de tecnologia, acordo de propriedade intelectual, serviço de nuvem, plataforma digital ou infraestrutura algorítmica — e o sentido profundo continua o mesmo. A dependência moderna não se dá mais no porto: ela se dá no data center.
Se no passado o ouro brasileiro financiou a Revolução Industrial inglesa, hoje corremos o risco de que nossos dados, nossa criatividade e nossa energia financiem a revolução algorítmica de outros. Mas nunca tivemos tantas oportunidades de romper o ciclo: capacidade de geração de energia limpa, sistemas financeiros sólidos, mercado interno vigoroso, competência científica respeitável, avanço rápido em IA aplicada e tecnologias sociais, criatividade cultural singular. O desafio é transformar esse potencial em projeto nacional, como Furtado sempre defendeu.
- Leia também: A aplicação da tecnologia nas escolas brasileiras
A dependência não é destino, mas estrutura histórica que só se desfaz com decisão política, capacidade tecnológica e controle soberano do excedente. O Brasil do século 21 precisa escolher se quer repetir o padrão do século 17 — ou superá-lo. O verdadeiro desenvolvimento começa quando um país decide pensar com a própria cabeça e processar com a própria inteligência — humana e artificial.

Opinião
Opinião
Opinião