
Adriana Modesto de Sousa — doutora em transportes pela UnB
Propostas de mudanças no processo de obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) precisam ser concebidas e avaliadas à luz da complexidade e potenciais interações e desdobramentos inerentes ao tema e ao que está efetivamente em jogo, pois reverberam em vários aspectos, como a estrutura e a dinâmica do processo de formação para a condução veicular, a atividade econômica, a segurança viária, entre outros.
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Convém destacar que são diversos os atores sociais envolvidos: o governo, gestando as políticas regulatórias; os empresários, prestando o serviço a partir dos Centros de Formação de Condutores (autoescolas); os instrutores, atuando na mediação teórico-prática; e parte da população, ansiando a conquista da tão sonhada habilitação como alternativa ao transporte público coletivo, que, embora mais sustentável, não é suficiente ou atraente a ponto de promover a desistência onírica ou a migração para o modo. Além, naturalmente, dos demais usuários da via que, em tese, passarão a compartilhar o contexto do trânsito com futuros condutores, na melhor das hipóteses, bem formados e aptos a enfrentar o trânsito, seja em contexto urbano, seja em contexto rodoviário.
Ainda que partindo do pressuposto de que, em termos de trânsito, o argumento econômico não deva ser preponderante e que a segurança e a manutenção da vida devem estar no topo das prioridades, é inegável que a tentativa de minorar os custos para a obtenção da CNH poderá atender à necessidade socioeconômica de demanda represada em razão do vultoso valor de mercado relativo ao processo em questão, sendo observada variação entre R$ 2 mil e R$ 4 mil. Convém destacar, no entanto, que tentativas de inclusão e democratização para a obtenção da licença já são observadas em alguns estados a partir da CNH-Social, Contudo, por não ser universal, ainda não há equilíbrio entre a oferta e a demanda que busca e se enquadra nos requisitos necessários ao benefício. Em síntese, "beneficiáveis" e demais que necessitam ou desejam se habilitar seguem sensíveis e dependentes de recursos próprios.
Buscando ampliar a reflexão, ainda que reconhecendo o alto custo para a obtenção da CNH, não podemos perder de vista que o espaço em que as pessoas promovem seus deslocamentos é dinâmico e compartilhado, e seus usuários, com níveis de vulnerabilidade distintos, utilizam-no por motivos e níveis de exposição aos riscos variados. Há aqueles cujo deslocamento se resume à origem/destino, há aqueles que têm o veículo como instrumento de trabalho, como é o caso de entregadores, que experimentam dupla carga de vulnerabilidade.
Diante do exposto, também em razão da característica da prevalência de sinistros, lanço a provocação: promover tal mudança prescindindo maior robustez nas reflexões e avaliações de desdobramentos seria o adequado para o atual cenário brasileiro, ainda desfavorável quando o assunto é segurança e sinistralidade viárias?
A participação e o controle sociais são recursos fundamentais para uma sociedade que se pretende democrática, sendo necessário louvar a consulta pública promovida pelo governo federal, mas, terá sido suficiente, representativa e técnica? Mudanças tão drásticas não careceriam de diversidade de arenas e a escuta ampliada, sobretudo por parte daqueles que experimentam o cotidiano das ruas, daqueles que se dedicam à pesquisa sobre os fenômenos do trânsito, daqueles que detêm notório saber e cujas considerações se perderam entre as milhares de "contribuições"? Parece-me que urgência não se constitui como boa conselheira, que carece de aprofundamento, identificação de consensos e aproveitamento para aperfeiçoamento ante os dissensos.
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Ainda sob a perspectiva da segurança viária, embora sejam vários os fatores que podem concorrer à ocorrência de um sinistro de trânsito, pode-se dizer que parte se relaciona sobre como se deu o processo formativo. Por essa razão, faz-se necessário advogar em favor de seu aprimoramento, buscando boas práticas, tendo como parâmetro realidades que se assemelham com o Brasil, naturalmente promovendo as adequações necessárias à nossa realidade. Reitero: nesse caleidoscópio, o fator econômico não deve ser preponderante, é apenas mais um fragmento.
Por fim, qualquer decisão deve ser plural, mas técnica também. Afinal, em termos de trânsito, os comportamentos inseguros e as falhas humanas são campeãs em infrações e determinantes nas ocorrências dos sinistros. Flexibilizar de forma demasiada ou tapar os ouvidos ante os alertas de especialistas da área pode promover a economia na ponta, mas aumentar a "fatura" para a saúde e a previdência. O que se espera é a imunidade ante interesses alheios à segurança no trânsito, seja de que esfera for. Que se promovam ajustes, adote-se modelo que se revele mais adequado, mas sem "rasgar" o conhecimento acumulado.
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