ARTIGO

Feminicídios: quando o medo mora em casa

Não podemos naturalizar o medo, nem permitir que o feminicídio e a violência doméstica continuem a ser estatística. Esse é um chamado à responsabilidade coletiva

Feminicidio luta artigo -  (crédito: Caio Gomez)
Feminicidio luta artigo - (crédito: Caio Gomez)

PAULA BELMONTE, deputada distrital, segunda vice-presidente e procuradora especial da Mulher da Câmara Legislativa do DF

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Escrevo este texto com as palavras que inundaram meus pensamentos no caminho de volta para casa naquela quinta-feira. Parada no Eixo Monumental, à espera do sinal abrir, vi o reflexo das luzes do trânsito se misturar ao pôr do sol. À minha frente, o Palácio do Buriti; atrás, a pressa de quem só quer chegar em casa. No meio dos carros, uma jovem mãe se aproximou vendendo paçocas. "Boa noite! Leva uma paçoca para me ajudar com o leite da minha filha", ofereceu-me com a voz mansa. Carregava no peito uma recém-nascida linda, dormindo tranquila, envolta num pano gasto, como um filhote de canguru abrigado no corpo da mãe. 

Quando nossos olhares se cruzaram, notei a mancha arroxeada no olho direito da mulher. Perguntei se estava tudo bem. Correndo contra o tempo, contra o sinal que podia abrir a qualquer momento e os carros que ainda poderiam lhe render uma venda, ela me respondeu que sim. Entregou-me um papel que explicava o porquê dela estar ali, um número de telefone e uma chave Pix. Guardei todas aquelas informações junto com uma sensação incômoda: a certeza de que não estava tudo bem. 

A imagem daquela mulher me acompanhou em todo o caminho de volta para casa. Foi então que tomei nota da urgência de encaminhar a situação às redes de proteção competentes. O que, de fato, estava por trás do olho roxo? Eu ainda não tinha respostas para os meus questionamentos. Mas era como se o olhar daquela jovem, mesmo silencioso, dissesse o que as estatísticas tentam traduzir. 

Dezembro começou com notícias angustiantes. Mesmo antes do fim do ano, o Distrito Federal já contabiliza 26 feminicídios em 2025, número que ultrapassa todo o registrado em 2024, quando 22 mulheres tiveram sua vida interrompida por esse crime. Atrás dos números, permanece a urgência de um olhar humano e sensível diante dessa trágica realidade. 

O caso mais recente ocorreu em 5 de dezembro, quando um soldado esfaqueou a cabo Maria de Lourdes Freire Matos, 25 anos, e incendiou as instalações do quartel do Exército em que a vítima se encontrava. 

Camila, Pâmella, Cheryla, Telma, Raquel, Liliane, Vanessa, Valdete, Elane, Marcela, Dayane, Maria José, Ana Rosa, Gessica, Allany também não estão mais aqui. Mães, esposas, filhas, mulheres. Uma união de substantivos femininos marcada por um sentimento diário: o medo. O medo de não voltar para casa. De não serem acreditadas. O medo de deixar o agressor e não saber o que a vida lhes reserva. Um medo que confunde amor com controle, cuidado com posse.

A violência contra a mulher começa muito antes do feminicídio. Começa nas palavras que ferem, nas ameaças que aprisionam e não escolhe idade, profissão ou endereço. Assusta-me saber que o lar, espaço onde deveríamos nos sentir seguras, tornou-se— o principal cenário das agressões. Segundo o Monitoramento de Feminicídios no Distrito Federal, painel mantido pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF), o feminicídio acontece principalmente dentro de casa, com o uso de arma branca e motivado por ciúmes. É nesse ambiente, onde se espera afeto e cuidado, que muitas mulheres enfrentam a incerteza do amanhã. 

Neste ano, de acordo com a SSP, o DF também registrou 1,8 mil ocorrências de descumprimento de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha. São mulheres que acreditaram na justiça, mas continuam desprotegidas. 

Como procuradora Especial da Mulher e mãe, é impossível olhar esses números sem sentir o peso do que eles significam. Nenhuma de nós deveria temer o próprio lar. Nenhuma deveria escolher entre a sobrevivência e a liberdade. Penso nas mães que perderam suas filhas, nos filhos que vão crescer sem suas mães e na herança invisível que o feminicídio deixa: o trauma, o silêncio e a ausência. 

Não podemos naturalizar o medo, nem permitir que o feminicídio e a violência doméstica continuem a ser estatística. Esse é um chamado à responsabilidade coletiva. Precisamos de políticas públicas eficazes e de uma sociedade vigilante. As vítimas podem estar mais próximas do que imaginamos, seja na família, seja no trabalho, seja na vizinhança, na faculdade, seja na academia, seja no semáforo de volta para casa. 

Todas as mulheres merecem viver com segurança, dignidade e respeito. Seguiremos unindo forças na luta contra a violência de gênero. 

 


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Por Opinião
postado em 12/12/2025 06:00
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