ARTIGO

2025: o ano em que a cultura decidiu não pedir licença

A cultura é aquilo que fica quando tudo o resto falha. A frase, tantas vezes repetida como consolo abstrato, ganhou em 2025 um sentido brutalmente concreto

opiniao 3012 -  (crédito: kleber)
opiniao 3012 - (crédito: kleber)

» JOSÉ MANUEL DIOGO Escritor e curador. Presidente da Associação Portugal Brasil 200, fundador da casa da cidadania da língua

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

Enquanto o mundo tropeçava em guerras prolongadas, algoritmos opacos, crises ambientais e nostalgias políticas mal resolvidas, a cultura fez o movimento inverso: avançou. Não pediu licença, não esperou consenso, não se vestiu de neutralidade. Foi barulhenta, híbrida, política e, acima de tudo, viva — como só a cultura consegue ser quando deixa de tentar agradar.

O ano começou a anunciar o tom. O cinema brasileiro reaprendeu a falar alto com Ainda estou aqui, de Walter Salles. Não levou o Oscar principal, mas conquistou algo mais raro e mais decisivo: público. Cinco milhões de pessoas nas salas, Fernanda Torres celebrada em Hollywood e a sensação — quase esquecida — de que o cinema nacional voltou a ser assunto de mesa de jantar, não apenas de edital ou política pública. A lição foi simples e profunda: quando a cultura encontra gente, vira locomotiva. Sem público, ela é discurso; com público, é força.

Na literatura, 2025 foi um ano simultâneo de consagração e confronto. O Prêmio Camões entregue à angolana Ana Paula Tavares representou mais do que um reconhecimento individual: foi um gesto simbólico de recentralização da língua portuguesa fora do eixo europeu tradicional. O Nobel, ao premiar o húngaro László Krasznahorkai, confirmou outra tendência clara: a literatura mundial anda desconfiada do conforto, das narrativas fáceis e dos consensos estéticos. Ao mesmo tempo, São Paulo decidiu incorporar a literatura à sua Virada Cultural, tratando o livro como acontecimento urbano e não como nicho. Em contraste quase irônico, livros eram censurados em escolas brasileiras e norte-americanas — e vendidos como nunca. Nada impulsiona tanto um romance quanto o medo que ele provoca.

As artes visuais, por sua vez, decidiram olhar o mundo de frente, sem subterfúgios. A 36ª Bienal de São Paulo trocou o Norte pelo Sul, colocou África e diásporas no centro e lembrou algo essencial: diversidade não é pauta circunstancial, é estrutura. Não se trata de "incluir", mas de reorganizar o mapa. Nos bastidores, a arte discutiu inteligência artificial, autoria e limites éticos, chegando a situações quase performáticas — como fotógrafos vencendo prêmios de arte por IA sem usar IA, apenas para expor o absurdo do sistema. Em 2025, até a provocação virou linguagem curatorial.

Na música, o planeta dançou em português. Funk carioca no topo global, fado indicado ao Grammy, kizomba e afrohouse atravessando fronteiras com naturalidade. Algoritmos mandavam, mas o corpo respondia. A indústria discutia inteligência artificial, vozes clonadas e direitos autorais, enquanto festivais lotavam e shows se transformavam em rituais coletivos de reencontro. A tecnologia acelerou tudo — menos a emoção ao vivo, que continuou insubstituível.

O teatro e a dança voltaram a respirar sem medo. Palcos cheios, musicais populares convivendo com coletivos experimentais, tecnologia colocada a serviço da memória do corpo. O Lume mostrou que até o efêmero pode ser arquivado sem perder densidade; grupos periféricos lembraram que presença continua sendo um ato político. A cena cênica fez o que sempre fez de melhor nos momentos críticos: transformou crise em gesto e gesto, em pensamento.

Nos museus, 2025 foi o ano da reconstrução simbólica. A reabertura parcial do Museu Nacional teve menos de espetáculo e mais de significado. Os azulejos tornaram-se política cultural concreta entre Brasil e Portugal. O patrimônio entrou na conversa digital sem se tornar raso. Preservar deixou de ser um verbo preso à saudade e passou a apontar para o futuro.

E, claro, houve os memes. "Guiana Brasileira", TikTok, redes fragmentadas, inteligências artificiais conversando com humanos e humanos falando como inteligências artificiais. A cultura digital seguiu caótica, criativa e profundamente reveladora. Nunca fomos tão contraditórios — nem tão conectados.

No balanço final, 2025 ensinou uma lição que muitos insistem em ignorar: cultura não é ornamento, não é decoração institucional nem luxo de tempos estáveis. Cultura é infraestrutura simbólica. Quando tudo oscila, é ela que organiza, provoca e projeta. Quem entendeu isso, saiu na frente. Quem não entendeu…virou meme.

 


  • Google Discover Icon
Por Opinião
postado em 30/12/2025 06:01
x