CRISTOVAM BUARQUE, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
O primeiro presidente eleito democraticamente, depois de quase um quarto de século, sofreu impeachment porque recebeu de presente um carro da marca Elba. A única mulher eleita presidente sofreu impeachment devido ao uso de contabilidade criativa, desrespeitando regras na execução do orçamento da União. No mês passado, o Brasil tomou conhecimento de que nada aconteceu com os responsáveis por uma doação disfarçada de R$ 12 bilhões do BRB, equivalente a 200.000 Elbas a um banco privado. No lugar de cassados e presos, estão protegidos pela censura às informações sobre o escândalo, sem punição aos protegidos por decisões judiciais e pelo silêncio da imprensa e de políticos. Até por líderes sindicais que temem novas denúncias chegarem a servidores enfraquecendo um banco estatal.
Este fato está tornando real um velho ditado: nascemos cada um com uma mochila cheia de vergonhas, que vai se esvaziando com o tempo para permitir a vida sem remorsos nem raivas. Milhares de Elbas continuarão sendo usados para enriquecer políticos e banqueiros.
Os socialistas, que no século 19 diziam que o roubo a um banco era menos imoral do que os juros que os bancos cobravam, não imaginavam o roubo de um banco estatal dando bilhões de reais a um banco privado. Quando faziam suas críticas ao capitalismo do século 19, não podiam imaginar uma rede de "crime superorganizado" envolvendo políticos, empresários, sindicalistas, juízes na conivência mútua para roubar ao público, protegendo e enriquecendo toda a cadeia de coniventes com o crime.
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Parece deboche que na mesma semana em que o Congresso promete lei contra o crime organizado, toma-se medidas para proteger o "crime superorganizado", ao ponto de barrar investigação e divulgação porque na cena do roubo aparece o nome de alguém da quadrilha com direito a forum especial. Não há crime mais organizado do que aquele que conta com a proteção do sistema judicial. A sensação é de que, ao longo de seus 40 anos, a democracia brasileira foi sendo corrompida até criar mecanismos de proteção ao "crime superorganizado", tratando-o como fato que a justiça deve encobrir quando o nome de um dos parceiros aparecer nas investigações pela Polícia Federal.
Nos últimos anos, o Congresso Nacional adotou a prática de sequestrar, anualmente, o equivalente a R$ 81 bilhões em emendas parlamentares, muitas delas com destino secreto, que confiscam recursos públicos usados conforme os interesses privados dos próprios parlamentares. O mesmo Congresso reserva R$ 5 bilhões para financiar partidos políticos e cobrir custos cada vez mais elevados do processo eleitoral.
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Como se não bastasse, R$ 20 bilhões são gastos anualmente com supersalários que ultrapassam o teto constitucional e, portanto, fazem parte da rede de conivência com o "crime superorganizado" contra os interesses públicos. Sem falar nos desperdícios, mordomias e privilégios, sem mencionar as corrupções do mensalão, do petrolão e os desvios do INSS — todos também financiados com recursos públicos, nem a cobertura de déficits bilionários em estatais, por causa de irresponsabilidades, incompetência, corporativismo e partidarismo sem compromisso público.
Diante desse panorama, pode-se estimar que pelo menos um milhão de Elbas são gastos sem risco de impeachment e, muitas vezes, ocultados do conhecimento público por decisões judiciais que lembram decretos secretos dos ditadores.
Depois de 33 anos do impeachment de Collor, parece que os Elbas se multiplicaram e passaram a integrar a rotina da democracia. Essa é a maior de todas corrupções: fazê-las secretas, como faziam os ditadores e, em consequência, imunes a punições. Aqueles que outrora impulsionaram a queda de Collor por um Elba, agora, silenciam para evitar a descoberta de novos malfeitos que poderiam justificar a cassação de político ou a submissão de um banco estatal aos interesses públicos, com seus servidores impedidos de fazerem negócios de compadrio com banqueiros privados. Com isso justificando a formalização da privatização de um banco estatal que é usado como pertencente, privadamente, aos políticos e servidores que o comandam.
A democracia que se iniciou com a ousadia de cassar um presidente que aceitou um Elba e uma presidente que sem qualquer benefício pessoal usou contabilidade criativa na execução do orçamento chega ao seu meio centenário escondendo um milhão de Elbas.
