ARTIGO

Casa de vidro em Brasília

A verdadeira casa mais vigiada do país ainda não é vigiada o suficiente. E, enquanto isso não mudar, o Brasil seguirá assistindo à política como quem assiste a um reality — perplexo

A capital do país foi anunciada como uma das cinco cidades que sediarão a nova dinâmica do Big Brother Brasil. No Conjunto Nacional, coração da capital, candidatos anônimos disputarão a atenção do público dentro de uma casa de vidro, expostos 24 horas por dia aos olhares curiosos de quem passa. O detalhe simbólico não poderia ser mais eloquente: a estrutura ficará de frente para a Esplanada dos Ministérios, a poucos metros do Congresso Nacional.

A televisão chama de "a casa mais vigiada do país" um espaço onde pessoas comuns são observadas por diversão, engajamento e audiência. Mas basta levantar os olhos da vitrine do shopping para perceber que, logo adiante, existe outra casa que deveria carregar esse título com seriedade. O Congresso Nacional não é um reality show, mas legisla sobre a vida real de milhões de brasileiros. Ainda assim, muitas vezes age como se estivesse protegido por paredes opacas, distante do escrutínio público que deveria ser permanente.

A coincidência entre a instalação da casa de vidro e os acontecimentos recentes na Câmara dos Deputados é perturbadora. Na madrugada de quarta-feira (10), enquanto o país dormia, foi aprovado o texto-base do chamado PL da Dosimetria, que reduz penas de condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Foram 291 votos favoráveis, 148 contrários e uma abstenção. Uma decisão de enorme impacto institucional, tomada em horário avançado, sob clima de tensão, violência e constrangimento.

Pouco antes da votação, cenas graves mancharam o plenário: jornalistas agredidos, deputados hostilizados e um parlamentar retirado à força da Mesa Diretora por policiais legislativos. Mesmo assim, por decisão do presidente da Câmara, Hugo Motta, a votação foi mantida. 

É aqui que a metáfora da casa de vidro se impõe. No Big Brother, quem entra sabe que será visto, julgado, votado e, se necessário, eliminado. No Congresso, deveria ser assim também: transparência radical, responsabilidade pública, prestação de contas constante. Mas o que se vê é um parlamento que decide temas sensíveis em sessões atropeladas, blindado por rituais formais que pouco dialogam com a sociedade.

A ironia é cruel. Candidatos anônimos, sem poder algum, são colocados atrás de paredes transparentes para provar quem merece entrar em um jogo. Já parlamentares, investidos de mandato popular, decidem o futuro da democracia longe de uma vigilância efetiva, mesmo quando os temas envolvem tentativas de ruptura institucional e a responsabilização de seus autores. Talvez, o Brasil precise inverter essa lógica. Menos espetáculo sobre a vida privada de desconhecidos e mais luz sobre os corredores do poder. Menos curiosidade sobre quem dorme, come ou chora diante de câmeras e mais atenção a quem vota projetos que reescrevem a memória recente do país e relativizam ataques à democracia.

A casa de vidro montada diante da Esplanada funciona como espelho involuntário de uma verdade incômoda: a verdadeira casa mais vigiada do país ainda não é vigiada o suficiente. E, enquanto isso não mudar, o Brasil seguirá assistindo à política como quem assiste a um reality — perplexo, indignado, mas quase sempre sem poder apertar o botão do paredão.

 


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