Renato Casagrande — doutor em educação pela Universidade de Aveiro (Portugal), mestre em administração pela FGV e pesquisador em liderança educacional
A pesquisa Raio-X da Vida Real, realizada pelo Instituto Data Favela e divulgada recentemente, ouviu 3.954 pessoas envolvidas com o tráfico de drogas em favelas de 23 estados brasileiros e trouxe uma pergunta simples, mas devastadora: "Olhando para trás na sua vida, o que você teria feito de diferente?" A resposta mais comum, dada por 41% dos entrevistados, foi que teriam estudado ou se formado. Diante desse dado, eu me peguei refletindo sobre como tantas trajetórias são moldadas pela ausência justamente daquilo que deveria ser a porta de entrada para um futuro possível.
A pesquisa também revela que metade dessas pessoas não chegou ao ensino médio. Não estamos falando de uma escolha arbitrária, de desinteresse ou rebeldia juvenil. Estamos falando do retrato de um país que falha onde mais deveria acertar: no acesso à educação e na construção de oportunidades reais. E, quando esse acesso não existe, a consequência aparece do jeito mais cruel: nas estatísticas da violência, da vulnerabilidade, das vidas interrompidas cedo demais.
Outro ponto que me chamou atenção foi o interesse dos entrevistados pelos cursos superiores: 18% escolheriam direito; 13%, administração; 11%, medicina ou enfermagem; outros 11%, engenharia ou arquitetura; e 7% optariam por jornalismo ou publicidade. Esses números escancaram algo que teima em ser ignorado: essas pessoas têm sonhos, ambições, curiosidades e imaginam, para si mesmos, carreiras que exigem anos de estudo e dedicação. O que faltou não foi a vontade, foi o caminho.
De acordo com o levantamento, entre seis ou sete em cada 10 desses indivíduos não conseguem ultrapassar dois salários mínimos de renda mensal. E isso não acontece por acaso. A falta de acesso à educação de qualidade, somada à ausência de uma porta de entrada digna no mercado de trabalho, empurra muitos para o tráfico como única forma de sobrevivência possível.
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O que considero essencial e que deveria estar no centro de qualquer debate sério sobre segurança pública é que o investimento em educação de qualidade é a estratégia mais efetiva e sustentável no combate ao crime. Educação não é discurso vazio. É escudo social. É prevenção. É o que abre horizontes, fortalece autoestima, ensina ética, abre caminhos profissionais e constrói pertencimento. Não é apenas sobre aprender matemática ou português, mas sobre existir num espaço seguro que acolha, proteja e ofereça perspectivas.
Há evidências concretas disso. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) e do Insper mostra que escolas de tempo integral podem reduzir em até 50% as taxas de homicídio de homens jovens. Metade. Não se trata de um número pequeno, nem de algo que possa ser tratado como detalhe. Onde há escola estruturada, o crime perde espaço.
Enquanto eu refletia sobre tudo isso, me peguei voltando àquela pergunta inicial: "O que você teria feito de diferente?" Para muitos dos entrevistados, a resposta foi estudar. E, para mim, essa resposta dói justamente porque mostra que a maioria nunca teve a chance real de escolher. É fácil apontar o dedo para quem errou; difícil é olhar para o sistema que os empurra para os mesmos erros há décadas.
Não existe transformação social séria sem educação. Não existe redução consistente da violência sem escola funcionando bem, sem professores valorizados, sem estrutura adequada, sem políticas de permanência escolar. E, principalmente, sem a compreensão de que jovens que hoje estão no tráfico não são apenas números em relatórios policiais; são vidas que poderiam ter seguido outro caminho se tivessem tido acesso a ele.
Não podemos continuar naturalizando a falta de oportunidades e, depois, nos espantar com o resultado dela. Se a resposta majoritária à pergunta "O que você teria feito diferente?" é "ter estudado", então já sabemos exatamente onde estamos falhando e onde precisamos agir com urgência. A educação não resolve tudo, mas sem ela nada se resolve de verdade. É ali que começa o futuro que tantos jovens ainda não puderam alcançar.
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