ARTIGO

A BR-319 e a nova década da destruição da Amazônia

O projeto de asfaltamento da BR-319 corta o coração da Amazônia e trará impactos muito mais relevantes, especialmente os relacionados com as mudanças climáticas

Cesar Victor do Espírito Santoengenheiro florestal, conselheiro do Conama, representando a Sociedade Civil da Região Centro-Oeste

Quando vejo lideranças políticas defendendo o projeto de asfaltamento da rodovia BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, vem logo em mente o que aconteceu nos anos 1980 com o asfaltamento da BR-364, que ligou Cuiabá a Porto Velho e Rio Branco e levou Rondônia a ser o estado da Amazônia com o maior percentual de floresta desmatada. 

Os anos 80 do século passado ficaram registrados com o triste título de "década da destruição" da Amazônia na série de documentários, amplamente divulgados no Brasil e no exterior, dirigida  por Adrian Cowell (historiador e documentarista chinês naturalizado britânico) e Vicente Rios (cinegrafista brasileiro), que teve como um dos participantes o famoso ambientalista gaúcho José Lutzenberger. Produção conjunta da Central Television e da Universidade Católica de Goiás, a série lançada em 1984 tem quatro episódios (Na trilha dos Uru-Eu Wau Wau, O caminho do fogo, Nas cinzas da floresta e Tempestades na Amazônia), que mostraram as consequências da chegada à Rondônia, nos anos 80, de milhares de migrantes de diversas partes do Brasil, especialmente do Sul, para ocuparem áreas ao longo da BR-364, financiada pelo Programa Polonoroeste/Banco Mundial. 

Os impactos socioambientais são incomensuráveis: desmatamento da floresta; queimadas; invasões de territórios indígenas e unidades de conservação; altos índices de malária; poluição de rios, entre outros, ocasionados tanto pelas atividades agropecuárias, como pelos madeireiros, garimpeiros, mineradoras, grileiros etc. Hoje, verificamos o forte desmatamento que acompanha a BR-364 e suas rodovias secundárias. Conforme o MapBiomas, Rondônia é o estado da Amazônia com o menor percentual de vegetação nativa, correspondendo a 60%, bem menor do que prevê o Código Florestal, que determina que se deve manter no mínimo 80% da floresta em pé. 

Todos esses impactos socioambientais ocorrerão, também, com o asfaltamento da BR-319. Se observarmos imagens de satélite atuais da Amazônia, verificaremos que onde há estradas o desmatamento é bastante acentuado. Foi o que aconteceu ao longo da Transamazônica, da Cuiabá-Santarém e da própria BR-364. A diferença é que o trajeto da BR-319 corta o coração da Amazônia e trará impactos muito mais relevantes, especialmente os relacionados com as mudanças climáticas. Conforme o respeitado pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Philip M. Fearnside, que estuda há mais de 40 anos as causas e impactos do desmatamento na Amazônia, em entrevista ao Climainfo: "Não se deve considerar somente a BR-319, mas também as cinco estradas estaduais a serem ligadas a ela, inclusive a AM-366, que abririam a vasta Região Trans-Purus, acarretando enormes consequências climáticas, com impactos desastrosos no Brasil".

De acordo com o MapBiomas, a área total desmatada na Amazônia até 2024 corresponde a 15,3% do bioma. De acordo com a ciência, estamos nos aproximando do ponto de não retorno, que indica que, se entre 20% e 25% de área for desmatada, a floresta não mais se sustentará, acarretando impactos que contribuirão fortemente para o aumento da temperatura global. Considerando a média anual de desmatamento da Amazônia apontada pelo MapBiomas, em 10 anos chegaremos próximo de 20%. Com o asfaltamento da BR-319, o desmatamento será mais rápido e mais intenso, podendo alcançar 25%. 

Na reunião plenária de setembro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), representes do Ministério dos Transporte apresentaram o relatório da Coalizão para a Descarbonização dos Transportes, com indicações de como tornar o setor de transportes um contribuidor ativo para a redução das emissões brasileiras de gases do efeito estufa, em atendimento ao Plano Clima Brasil. Mostrou-se que o setor de transportes é responsável por cerca de 11% das emissões nacionais de CO2, sendo o modal rodoviário responsável pela emissão de mais de 90%, o aeroviário 3%, o ferroviário 2% e o hidroviário 2%. 

Esse cálculo desconsidera as emissões relacionadas à construção de novas rodovias, que provocam o desmatamento, principal fator de emissão de gases do efeito estufa no Brasil. Não contempla mudanças nos modais de transporte, priorizando o modal rodoviário, desconsiderando que a vocação natural de transporte na região Amazônica seja o hidroviário, que tem um custo muito mais baixo e não leva ao desmatamento de grandes áreas. O transporte de cargas e pessoas previsto para a BR-319 poderia ser atendido pela hidrovia do Rio Madeira, partindo de Porto Velho e seguindo, tanto para Manaus, como para Belém.

Seria mais inteligente e estratégico para o Brasil manter a floresta em pé e obter recursos com a venda de serviços ambientais para o mundo, como a produção de água, ar puro, clima agradável, biodiversidade, sequestro de carbono etc. O desmatamento que virá com o asfaltamento da BR-319, somado aos impactos socioambientais causados por outros projetos em curso na Amazônia, como a exploração de petróleo, o garimpo, a mineração e a agropecuária espalhados por diferentes pontos do bioma, leva a certeza de que os próximos anos serão caracterizados como a nova década da destruição da Amazônia. 

 

Mais Lidas