Da redemocratização à Constituição

Maria de Lourdes Abadia: "O que se vê é muito ódio, rancor e fake news"

A ex-governadora do DF relembra a participação histórica na Assembleia Nacional Constituinte, fala sobre o papel das mulheres na política, o enfraquecimento da democracia e alerta para o risco de retrocessos: "Ninguém se entende"

Abadia:
Abadia: "Eu olho hoje para o Brasil e sinto que está faltando colo de mãe" - (crédito: Keity Naiany/CB/D.A.Press)

Maria de Lourdes Abadia foi uma das duas mulheres eleitas para representar o Distrito Federal na primeira bancada da Câmara Federal. Assistente social, egressa das bases populares de Ceilândia, Abadia foi uma das 26 mulheres que integraram a Assembleia Nacional Constituinte, entre os 559 constituintes que redigiram a Carta Magna de 1988. Décadas depois, tornou-se a primeira governadora do DF. Em entrevista à série Da redemocratização à Constituição, Abadia relembra bastidores históricos da Constituinte, como a criação do emblemático “lobby do batom”, defende o fortalecimento das instituições democráticas e manifesta preocupação com os rumos do país. “Eu olho hoje para o Brasil e sinto que está faltando colo de mãe”, resume.

Como foi o início da trajetória política e a eleição como deputada federal em 1986?

Fui eleita pela maioria dos eleitores da Ceilândia, onde passei 16 anos. Eu nunca tinha votado e, de repente, recebi a visita do Marco Maciel, do governador de Minas, Aureliano Chaves, e do Osório Adriano. Eles me convidaram para fundar o PFL. Na época, eu nem sabia direito o que significava aquilo, fundar um partido político. Então, foi o momento em que comecei a aprender sobre política, sobre eleição, sobre todo o processo democrático. Fundamos o PFL. Depois, com o governador José Aparecido, que coordenou toda a montagem da primeira eleição de Brasília, eu saí candidata a deputada federal. Fomos eleitas duas mulheres — a Márcia Kubitschek e eu — e mais sete homens. Foi um começo cheio de desafios, mas também de esperança.

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Como mulher parlamentar, em uma época em que o Congresso era, majoritariamente, masculino, quais foram os principais desafios enfrentados na Constituinte?

Foram muitos, mas muitos mesmo. Éramos apenas 26 mulheres num universo de 559 constituintes. E éramos um grupo muito heterogêneo. Tinha duas filhas de ex-presidentes da República, como Márcia Kubitschek e a Tutu Quadros, filhas de Juscelino e Jânio. Outras eram mulheres de políticos, como Rita Camata, a Vilma Maia, a Lúcia Braga da Paraíba. E também as grandes estrelas, como a Ana Maria Rattes, a Benedita da Silva, a Lídice da Mata. A Lídice, por exemplo, se destacava muito — usava saia comprida, cabelo black power, era uma figura muito fotografada. Era a mulher brasileira representada ali, com toda a diversidade do país. A primeira coisa que fizemos juntas foi criar o chamado “lobby do batom”. Foi uma reunião histórica na qual combinamos que, independentemente de partidos, ideologias ou regiões, iríamos atuar integradas, como mulheres brasileiras. Foi um marco. E olha que a primeira demanda conjunta foi pedir um banheiro feminino no plenário da Câmara. O Oscar Niemeyer havia feito só o masculino. Até isso faltava. Mas conseguimos — e fizemos a inauguração simbólica.

Qual foi a importância desse gesto inicial, do lobby do batom?

Foi um gesto simbólico e muito concreto. O doutor Ulysses Guimarães até riu quando comentamos que não havia banheiro para mulheres no plenário. Nem ele sabia disso. Foi engraçado, claro, teve piadas do tipo “vocês não querem igualdade? Então têm que fazer xixi de pé”. Coisas típicas do brasileiro. Mas isso mostrou, desde o início, que estávamos ali para ocupar espaço e conquistar respeito.

Quais conquistas específicas para as mulheres a senhora destaca como resultado da atuação feminina na Constituinte?

Foram muitas. E, desde o início, ficou claro que nós não íamos nos limitar a pautas femininas. Atuamos em todo o texto constitucional. Mas, claro, com uma atenção especial aos direitos das mulheres. Recebemos reivindicações de todos os cantos do país — pescadoras, professoras, médicas, empresárias, mulheres que trabalhavam com sal no Nordeste. Nós nos tornamos captadoras de sonhos. E isso gerou resultados concretos. Um deles foi o artigo 5º da Constituição, que afirma que homens e mulheres são iguais perante a lei. Isso foi uma grande vitória, porque nossa legislação era muito discriminatória. Eu mesma apresentei uma emenda que permitia que mulheres fossem as titulares da escritura e do lote habitacional. Eu tinha visto isso na Ceilândia, em que os lotes só podiam ser entregues em nome do marido. Se o casal se separava, a mulher, com os filhos, ficava desamparada. Graças à nossa luta, hoje mulheres podem ser chefes de família e ter o nome reconhecido como titular do imóvel.

A senhora acredita que a Constituição de 1988 conseguiu consolidar os direitos das mulheres?

Avançamos muito, mas ainda há lacunas. O mundo mudou muito de lá para cá. Na época da Constituinte, não existiam redes sociais. O empoderamento feminino cresceu, mas ainda não é total. Há mulheres com a mesma formação e capacidade que os homens, mas que ganham menos. Isso mostra que ainda há um caminho longo a percorrer. Mas é um processo e acredito que, com o tempo, vamos avançando mais.
Como a senhora avalia a evolução da democracia brasileira nesses 40 anos desde a Constituição?
Acho que avançamos, sim. O direito de eleger o presidente da República foi um marco. Mas, nos dias de hoje, o país está dividido. É uma impaciência geral, um desrespeito ao pensamento do outro. Isso não é democracia. Democracia é respeitar a diferença. E hoje, infelizmente, vivemos um momento de muita intolerância.

Naquela época, os políticos eram mais elegantes? O debate era mais respeitoso do que hoje?

Ah, com certeza. Desde a Constituinte havia a extrema esquerda, a esquerda, o centro, a centro-direita e a direita mais radical. Mas havia respeito. Eu me lembro bem quando o senador Jarbas Passarinho subia à tribuna, ou o Osires Dornelles ou o Delfim Netto, todos representantes fortes da direita, o plenário parava para ouvi-los. E do outro lado você tinha Pedro Simon, Covas, os grandes nomes da esquerda. Era um embate respeitoso, ideológico, de projeto de país. Existia o embate, mas havia cavalheirismo. Uma delicadeza até. Hoje o que se vê é muito ódio, rancor, fake news. Falta tolerância.

Essa intolerância, essa falta de respeito, também não pode ser consequência de uma falha no nosso processo educacional?

Com toda certeza. Eu, inclusive, falei sobre isso recentemente. Muita gente não sabe o que é democracia. E isso é uma falha do nosso sistema educacional e político. A gente está vivendo uma geração que se acha dona da verdade. Se você pensa diferente, então, você é inimigo. Eu fico muito triste com isso. Porque a base de tudo é a educação. E a educação perdeu espaço. Antes, por exemplo, nós tínhamos o Hino Nacional cantado nas escolas todos os dias. As crianças sabiam cantá-lo. Tinha a hora cívica. Hoje, às vezes, eu vejo jogadores de futebol no estádio, cantando o hino, e fico olhando para ver se estão mesmo cantando — parece que não sabem a letra. A gente perdeu isso. Por outro lado, quando a educação abraçou a questão ambiental, houve um despertar. As crianças começaram a entender a importância de cuidar do planeta. Isso mostra que, quando há investimento em educação, os resultados aparecem.

A senhora acredita que o Brasil falhou em manter viva a memória da ditadura e da redemocratização? O jovem de hoje compreende o valor da democracia?

Não. O país sem memória não tem futuro. Isso tem que estar nas escolas. A democracia é o direito da sociedade de fazer suas escolhas, de ter um sistema político próprio, de votar, de se expressar. O jovem precisa entender isso, precisa saber o que aconteceu. O que foi o regime militar. O que foi lutar por eleições diretas. Quem não tem memória vai escrever o quê para o futuro?

O Brasil está carente de lideranças políticas?

Em parte, sim. A gente olha para o Brasil hoje e não vê lideranças. Na Constituinte, você tinha um Mário Covas, um Brizola, um JK. Tinha nomes que o Brasil inteiro conhecia e respeitava. Hoje, você vê algumas figuras surgindo com base em redes sociais, sem trajetória, sem experiência. Eu até vi uma pesquisa — não sei se é fake news — mostrando o Gusttavo Lima, o cantor, como possível candidato. E ele já aparecia lá em cima nas intenções de voto. Não estou desfazendo de ninguém, mas para liderar um país como o Brasil, com a diversidade que temos, precisa ter mais do que popularidade. Precisa ter compromisso, história, projeto.

Em 2023, o Brasil vivenciou dois episódios graves. A tentativa de golpe de Estado e os ataques de 8 de janeiro às sedes dos Três Poderes. Como a senhora avalia esses episódios?

Com muita tristeza. Hoje, se discute se houve ou não houve golpe. Mas o que aconteceu foi grave demais. Ver o Congresso Nacional sendo invadido, depredado. Aquilo não foi só quebrar um relógio histórico. Foi quebrar o símbolo da democracia. E isso não é da índole do povo brasileiro. Aquilo foi ódio, rivalidade e ignorância. Eu assisti tudo como todo mundo, tentando entender. A Lava-Jato, por exemplo, teve corrupção? Teve. E hoje? Parece que tudo foi perdoado, que nada existiu. E agora vem esse episódio do batom da Débora, que virou símbolo lá fora. Tem gente na Alemanha, na França, na Itália perguntando: “17 anos de prisão por escrever com batom numa estátua?” É muito confuso. Eu confesso que estou esperando para ver o que vai ser do nosso país.

A senhora acredita que é necessário punir os envolvidos, mas com dosimetria?

Sim, tem que punir. Mas é preciso diferenciar. Não se pode colocar todo mundo no mesmo saco. Tem gente que foi manipulada, gente que estava vendendo água, fazendo churrasco, indo ali como massa de manobra. E tem gente que foi para vandalizar, para atacar mesmo. A Justiça precisa separar o que é pau e o que é pão. Agora, dar 17 anos para todo mundo? Com criança no meio, com idosos? É preciso ter cuidado. Não pode banalizar nem punir sem critério. Quem quebrou o patrimônio histórico tem que responder. Mas o resto precisa ser analisado com justiça.
Como a senhora vê o crescimento de grupos de extrema-direita no Brasil e no mundo?
Eu vejo com preocupação, mas também acho que isso é culpa da política. Os políticos do mundo não estão dando respostas ao que a humanidade espera. A esquerda, com seus ideais, também não entregou o que prometeu. E isso gerou frustração. O resultado é que muita gente parte para o extremismo. E isso está em vários países como França, Itália, Estados Unidos, Argentina. A extrema-direita cresce porque as pessoas não encontram soluções. E é triste, porque vemos ainda tanta fome no mundo, tanta desigualdade. A África ainda vive em miséria. E ninguém parece dar resposta.

Esses pedidos de anistia, hoje, podem ser comparados com os referentes aos da ditadura militar? São coisas distintas?

Acho que são coisas bem diferentes. Na ditadura, a anistia foi um processo de pacificação nacional, necessário naquele contexto. Agora, me parece que está tudo misturado. Colocaram todo mundo num mesmo saco. Pessoas que quebraram, vandalizaram e outras que estavam lá por outras razões. Tem que analisar caso a caso. A Justiça precisa ser feita. Mas com critério. Não pode ser no atacado. Tem que diferenciar.

O Judiciário tem recebido críticas. As instituições estão enfraquecidas?

Acho que sim. Estão fragilizadas. A Constituição diz que os poderes são harmônicos e independentes. Mas hoje está todo mundo se metendo no papel do outro. O Judiciário legisla, o Legislativo judicializa, o Executivo acusa. Está tudo bagunçado. E isso enfraquece a democracia. Os ministros do Supremo estão sendo atacados, ameaçados. Isso não é normal. Ao mesmo tempo, o Supremo também ultrapassa seus limites, às vezes. É um desequilíbrio perigoso.

A senhora sempre foi reconhecida pela elegância no trato político. O que espera das novas gerações? Qual mensagem deixa para os jovens?

Eu me emociono quando abro a Constituição e vejo meu nome ali. E o que eu posso dizer aos jovens é que não desistam do Brasil. Não desistam da democracia. Não desistam de buscar um caminho melhor. Às vezes, me perguntam se ainda estou viva, se ainda estou lutando. Sim, estou viva, estou atuante. Tenho amor por Brasília, pelo DF e pelo Brasil. O que eu peço é que as pessoas tenham coragem de sonhar com um país mais justo. E que não deixem de lutar por ele.

postado em 16/06/2025 05:53
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