Para usar uma expressão do general Golbery do Couto e Silva, estrategista do regime militar, talvez uma "diástole" em relação ao presidente Jair Bolsonaro e aos generais condenados pelo 8 de Janeiro tenha começado mais cedo do que se imaginava, na velha tradição republicana de perdoar os revoltosos. A origem dessa tradição é a Guerra dos Farrapos, um movimento republicano e separatista que sacudiu o Rio Grande do Sul e Santa Catarina de 1835 a 1845, cujos generais foram anistiados e incorporados ao Exército Brasileiro com suas patentes originais, pelo Tratado de Poncho Verde e, depois, canonizados pela República.
Bento Gonçalves renunciou à Presidência da República Rio-Grandense em 1844 após um duelo contra Onofre Pires. Após o acordo, manteve a patente, retirou-se para sua estância em Camaquã e faleceu em 1847, dois anos após o fim da guerra, vítima de pleurisia. David Canabarro foi o principal negociador do acordo e, anos depois, liderou tropas brasileiras na Guerra do Paraguai (1864-1870), vindo a falecer em 1867.
Bento Manoel Ribeiro, que trocou de lado várias vezes, manteve grande influência política e militar na província até sua morte, em 1855. Antônio de Sousa Neto, proclamador da República Rio-Grandense, mudou-se para o Uruguai e, depois, retornou ao Brasil para lutar na Guerra do Paraguai, onde foi ferido em combate e faleceu em Corrientes, na Argentina, em 1866. Giuseppe Garibaldi deixou a revolução em 1841, foi para o Uruguai com Anita Garibaldi, para retornar à Itália e liderar sua unificação.
A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 confrontou essa tradição, com a centralidade do Poder Judiciário como protagonista institucional da resposta à tentativa de golpe. Ao contrário de 1937 ou de 1964, não foi o sistema político que arbitrou o desfecho, mas o Supremo Tribunal Federal (STF), que assumiu integralmente a investigação, o julgamento e a dosimetria das penas. O balanço apresentado pela Primeira Turma ao fim de 2025 é histórico e sem precedentes na democracia brasileira, ainda que o Congresso tente recuperar parte desse protagonismo com a redução da dosimetria das penas.
Desde janeiro de 2023, foram autuadas 1.734 ações penais relacionadas aos atos antidemocráticos. Desse total, 619 envolveram crimes mais graves — organização criminosa, tentativa de golpe de Estado e atentado contra o Estado Democrático de Direito — enquanto 1.115 trataram de delitos de menor gravidade, como incitação e associação criminosa. Até o encerramento do ano judiciário, a Primeira Turma condenou 810 pessoas, sendo 395 por crimes graves e 415 por crimes menos severos, além de 14 absolvições.
Punições severas
Foram homologados 564 acordos de não persecução penal, cerca de 45% das ações, que envolveram autores de menor potencial ofensivo, com medidas alternativas, como prestação de serviços comunitários e cursos sobre democracia, além do ressarcimento de mais de R$ 3 milhões aos cofres públicos. Do restante, 31% das condenações resultaram em penas leves, de até dois anos e meio, e apenas 24% corresponderam a condenações mais severas. Dentro desse grupo, cerca de 5% receberam penas superiores a 12 anos, reservadas às condutas de maior gravidade.
Esses números desmontam a narrativa de punição indiscriminada. Houve individualização da pena e concentração do peso do sistema penal nos núcleos dirigentes, financiadores e articuladores da ruptura institucional, ao mesmo tempo em que se descomprime o sistema em relação à massa mobilizada politicamente. É nesse contexto que se insere as medidas de flexibilização de penas decorrentes da análise sobre saúde, comorbidades e prisão domiciliar humanitária.
Dos 38 condenados que pediram o benefício, 21 obtiveram concessão e 17 tiveram o pedido negado. Entre os beneficiados, 15 são idosos, todos com alegações de doenças graves ou incapacitantes. O caso do general Augusto Heleno, de 78 anos, condenado a longa pena e portador de Alzheimer, simboliza essa inflexão, de caráter humanitário. Já o ex-presidente Jair Bolsonaro, embora alegue problemas de saúde, permanece reconhecidamente fora desse padrão jurisprudencial.
A negativa reiterada de prisão domiciliar, mesmo diante da autorização para cirurgia eletiva, indica que o STF fixou uma linha clara: apenas quadros graves, permanentes e incompatíveis com o regime fechado justificam a exceção. Antes das eleições de 2026, qualquer flexibilização mais ampla do regime fechado de Bolsonaro dependerá de um agravamento médico efetivo e comprovado, sob pena de a Corte ser acusada de interferência direta no processo político. Depois da eleição, será outra história.
A "diástole" não é anistia nem absolvição disfarçada. É controlada e seletiva. O encerramento formal dos processos no STF, agora, desloca o conflito para uma nova instância: o Superior Tribunal Militar, que deverá julgar a perda de patente e graduação dos militares condenados. Caso o STM confirme a cassação das patentes, o Brasil consolidará um precedente inédito: a responsabilização plena de oficiais-generais por crimes contra a ordem democrática, com sanção penal e sanção corporativa. Se, ao contrário, prevalecer uma leitura corporativa mitigadora, a "diástole" poderá se converter em recomposição simbólica do estamento militar, relativizando o alcance do ajuste de contas promovido pelo STF.
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