
Especial para o Correio — Isabella Campos da Paz
— Moço! Moço! Para o táxi! O Sr. viu aquela placa?
— Sim, senhora.
— Estava escrito "Usina". É isso mesmo?
— Sim, senhora.
— O Sr. não vai acreditar! Eu passei a vida inteira estudando sobre o ciclo do açúcar na época do Brasil-Colônia. E eu, que sou uma brasileira nata, nunca vi uma usina de perto. O Sr. se importa de me levar lá, agora?
Pernambuco, início dos anos 1990, tinha ido eu pesquisar os gêneros musicais locais, impressionada com Chico Science & Nação Zumbi. Levava comigo o desejo de ouvir sons diferentes e uma mala vazia para encher de CDs. Até aquela época, meu repertório musical se resumia à bossa, ao samba e ao jazz. Do Recife, só o frevo e o maracatu dos carnavais eu conhecia. Sempre que viajava, procurava relíquias musicais em lojas de música, meus lugares sagrados.
Mas desta vez, passei por uma verdadeira turnê auditiva pernambucana, guiada por um músico-historiador. Fiquei pasma. Havia tanta "Batida Diferente" das de Maurício Einhorn e Durval Ferreira, ou de João Gilberto, que eu cheguei a pensar que eu era uma estrangeira dentro do meu próprio país. Caboclinho, coco, ciranda, cavalo-marinho, embolada, Marinês, Lia de Itamaracá, Raízes de Arcoverde, Banda de Pífano de Caruaru, Antônio Nóbrega e o surpreendente Quinteto Armorial foram apenas alguns dos gêneros musicais e nomes que eu comecei a ouvir pela primeira vez! Muitos já existiam há tempos, porém não tocavam nas rádios do planalto.
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Mas voltando à usina, extremamente rústica, a primeira visão muito me impressionou. Eram metros e metros de altura de canas empilhadas, das quais se extraía o caldo que seria cozido nas caldeiras, para formar cristais de açúcar ou o chamado açúcar mascavo. Após o cozimento, a parte do caldo que não havia cristalizado formava um líquido escuro denominado melaço, direcionado para outros fins. Já o açúcar mascavo recebia um banho químico que o deixava totalmente branco, como conhecemos. Após ser ensacado, seguia por uma esteira até caminhões, que o levariam ao porto para exportação! Já para a exportação! Por um momento, um sentimento de deixar escoarem nossas riquezas passou rapidamente por mim, o pau-Brasil, o ouro, mas foi-se.
O cenário da usina lembrava um pouco o filme "Indiana Jones", pois andávamos a cerca de 5 metros do chão, em trilhas de corda bamba com ripas de madeira, num balançar sem fim. Mas, o mais marcante de toda essa visita foi o som arretado das centrífugas, que giravam sem parar em velocidade rápida, fazendo tum tum tum tum tum... num treme treme só. Deviam ser de aço essas centrífugas antigas, mas a aparência delas me remetia à lataria frágil do homem de lata do filme "O mágico de Oz".
Pareciam prontas para desmoronar a qualquer tempo. Tum tum tum tum tum tum tum... Brasília, meados de 2025. Acomodo amigos em meu carro, com garrafas de vinho juntas a um panelão de arroz carreteiro, para ida a uma fazenda. Na estrada de terra e de cascalhos, panelão e garrafas começam a bater entre si. De repente, as batidas me trazem à mente o tum tum tum das centrífugas da usina pernambucana! Imediatamente me lembro de Chico Science e começo a cantar:
— "Eu vim com a Nação Zumbi! Ao seu ouvido falar! Quero ver a poeira subir!" E agora bora cantar! (Risos) Todos cantam. Sentimentos positivos emergem da cantoria.
Às vezes as memórias que vivem escondidas em nós esperam apenas uma deixa sonora para acordarem. Penso nas pessoas que sofrem com o Alzheimer e em como a musicoterapia pode ajudá-las. E vejo que sou uma brasileira cuja identidade e sentido se constituem por eu ter visitado uma usina de açúcar pernambucana que faz parte da história do Brasil, hoje um dos maiores exportadores de açúcar do mundo. O que seríamos sem memória? Não somos nós que contamos histórias. São as nossas memórias.
Isabella Campos da Paz é musicoterapeuta e professora de canto
Revista do Correio
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