Cidade Nossa

Cidade Nossa: De mal com as palavras

Na crônica deste domingo (20/7), o jornalista Cláudio Ferreira fala sobre o uso excessivo de algumas palavras, especialmente nas redes sociais

Crônica Revista 2007 -  (crédito: Caio Gomez)
Crônica Revista 2007 - (crédito: Caio Gomez)

Ando brigado com algumas palavras da língua portuguesa. Não com a origem ou o som, mas com o uso - em minha opinião, excessivo - que a gente tem feito delas. Palavras têm uma carga muito grande, para o bem e para o mal: podem sintetizar uma ideia, expressar um sentimento nobre, mas também podem machucar.

Concordo que temos domínio do que escrevemos ou falamos, mas não do que os outros leem ou ouvem. É impossível adivinhar como um texto chegará ao leitor ou como a mensagem mais cotidiana atingirá o receptor. Mesmo assim, não custa nada estar atento para a possibilidade de ferir alguém com uma oxítona. Melhor seria encantar alguém com uma proparoxítona bem colocada.

Para além de ferir ou encantar, as palavras podem se desgastar pelo uso. É como se fossem perdendo o brilho ao ganhar novos significados ou ao se popularizarem demais. Viram "arroz de festa".

O verbo "entregar", por exemplo, vem me causando arrepios. Não o sentido de entregar uma encomenda, um presente ou uma flor. Mas num mundo em que o produto vale cada vez mais do que o processo, "entregar" agora serve para tudo. Todos temos que entregar coisas diariamente, como se estivéssemos sob a mira de uma arma. A qualidade do que se entrega, que já foi uma preocupação, parece que foi superada pela quantidade. A vida está virando uma linha de montagem.

Virou um elogio dizer que fulaninho "entregou" uma bela interpretação de uma música ou uma cena inesquecível no teatro. Outro dia ouvi, na academia que frequento, um personal trainer pedindo para o aluno "entregar" um número determinado de repetições de um exercício. E por aí passamos os dias sabendo de entregas rotineiras de famosos ou anônimos.

Outra palavra que vejo bastante desgastada é o "icônico". Tudo hoje em dia é icônico, pessoas, lugares e coisas. Artistas, jogadores de futebol, músicas, livros e por aí vai. O vocábulo está nas redes sociais, em textos jornalísticos e outros desfiares de palavras. Mas se tudo é icônico, nada é icônico. É como prioridade: se tudo for prioridade na nossa vida, nada será prioridade.

Sabe quem é o primo mais recente do "icônico"? É o "gigante". Escrito assim, tudo bem, mas falado, tem que ser "gigaaaaaaaaaaaante". Todo mundo atualmente é gigante. Todo mundo dá entrevista chamando o outro de gigante. Todo discurso de homenagem usa a palavra "gigante". Eu me lembrei do seriado Terra de gigantes, dos anos 1960, que via — e adorava — quando era criança. Fico me perguntando se temos tantos gigantes assim ou se estamos exagerando nos elogios.

Fora as palavras estrangeiras que acabam sendo incorporadas sem necessidade, já que temos os termos correspondentes em português. A palavra "time", por exemplo (do inglês team), sempre se referiu às equipes de futebol. No trabalho, a gente sempre foi chamado de equipe. Agora está na moda chamar o grupo de trabalho de "time" — e ainda com uma entonação diferente, como se a palavra valorizasse mais os trabalhadores que, diga-se de passagem, começam a ser chamados também de "colaboradores".

E assim vivemos, entre "times" e "jobs" (não mais trabalho), "entregando muito" e observando um desfilar de pessoas gigantes, além de objetos e lugares icônicos. E pensar que temos um universo tão grande de palavras esquecidas...

*Cláudio Ferreira é jornalista

 

 

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CF
postado em 20/07/2025 06:00
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