Comportamento

A sombra do passado: porque histórias antigas despertam angústia nos relacionamentos

A obsessão pelo passado amoroso do parceiro não é um transtorno, mas especialistas alertam que a fixação é um padrão disfuncional que corrói a confiança e a intimidade na relação presente

O ciúme retroativo pode minar a relação de um casal  -  (crédito: Freepik)
O ciúme retroativo pode minar a relação de um casal - (crédito: Freepik)

O passado amoroso e sexual do parceiro pode se tornar uma fonte de angústia e conflito para muitas pessoas, um fenômeno amplificado e discutido na internet sob o termo ciúme retroativo. Apesar de não ser uma classificação diagnóstica oficial, a reação é real e tem sido cada vez mais abordada em consultórios de psicologia, especialmente com o advento das redes sociais, em que interações virtuais podem ser sinônimos de brigas entre casais. 

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Quem nunca teve ciúmes de algum caso amoroso do atual namorado ou namorado que atire a primeira pedra. Assim, o ciúme retroativo é definido como uma fixação emocional e cognitiva sobre a história pregressa do parceiro. Não se trata de uma ameaça presente, mas, sim, de uma preocupação excessiva com ex-companheiros ou experiências anteriores que geram angústia e interferem no bem-estar da relação.

O psicanalista e professor de psicologia do Centro Universitário Uniceplac Paulo Henrique Roberto explica que o termo deriva da concepção de um ciúme exacerbado e irracional sobre histórias afetivas que já se passaram. Segundo ele, esse sentimento incômodo surge quando o diálogo aborda experiências sexuais e amorosas vividas pelo parceiro atual.

"Nessa retórica, aquele que sente ciúmes está diante da possibilidade de perda do objeto amado, daquele que o completa, por isso, costuma sentir que está sujeito à perda de uma parte de si mesmo", detalha o psicanalista. Desse modo, o indivíduo age como um "paciente persecutório", acreditando que a pessoa com a qual está se relacionando guarda uma "verdade não contada." 

Isso se manifesta em perguntas excessivas, pedidos de esclarecimento e investigações em torno de qualquer tema, colocando "em xeque a autonomia do parceiro". Na visão do especialista, a fixação no passado atua como um veneno lento para a relação. Paulo Henrique Roberto enfatiza que o ciúme atrapalha porque intensifica as discussões em torno da 'verdade' inteiramente subjetiva daquele que sente essa angústia não explicada. 

"Não há resposta que caiba diante de sua interpretação. Os comportamentos mais comuns do ciumento retroativo, como perguntas excessivas sobre detalhes íntimos de ex-parceiros e a checagem compulsiva de redes sociais, geram a erosão da confiança", acrescenta o profissional. 

Não é transtorno, mas pode ser obsessivo

Ainda que não seja classificado como um transtorno independente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) ou na CID (Classificação Internacional de Doenças), a psicanalista Edilene Carneiro aponta que há reações consideradas graves dentro desses comportamentos, que variam de situação para situação. Pode ser uma reação emocional comum e temporária, ligada a inseguranças normais, ou pode assumir um caráter disfuncional e obsessivo quando é persistente, intrusivo e causa prejuízo significativo, como ansiedade contínua. 

Nesses casos mais graves, as cognições e comportamentos obsessivos podem se encaixar em quadros como o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) ou transtornos de ansiedade. A profissional destaca a diferença fundamental entre o ciúme comum e o retroativo: "Ciúme comum (reativo/situacional) é a resposta a uma ameaça percebida no presente (exemplo, flerte atual, traição ou sinal de risco real). Ciúme retroativo tem foco no passado, não em uma ameaça atual e costuma envolver pensamentos intrusivos e ruminativos, busca compulsiva por detalhes da vida anterior do parceiro e comparações constantes com ex-parceiros", detalha.

A principal diferença é, portanto, o alvo temporal (passado versus presente) e o caráter mais obsessivo/ruminativo do retroativo. O ciúme retroativo é frequentemente intensificado por gatilhos externos e internos. A insegurança pessoal, a baixa autoestima e os medos de rejeição são os principais combustíveis internos para esse tipo de comportamento.

De acordo com a psicanalista, o papel das redes sociais também é crucial nesse processo, pois o fácil acesso a fotos e mensagens antigas aumenta a oportunidade de "investigar" o passado e os estilos de apego ansioso, que elevam a sensibilidade à rejeição. Assim, tanto interações do passado quanto novas que possam surgir podem ser primordiais para colocar fogo nesse incêndio criado por apenas uma pessoa. 

Edilene Carneiro alerta que, quando grande parte do tempo do casal é gasta em ruminações sobre o passado, há menos presença e disponibilidade emocional no presente, resultando na diminuição da intimidade. Além disso, os comportamentos de controle (como snoop e confrontos) geram defesa e afastamento no parceiro, "o que alimenta mais insegurança e ciúme — podendo tornar a relação disfuncional."

Estratégias terapêuticas 

O tratamento para o ciúme retroativo é multifacetado e busca tanto a compreensão estrutural quanto a alteração de comportamentos. Paulo Henrique Roberto, com a abordagem psicanalítica, busca confrontar a "retórica sobre a própria falta" do sujeito.

"A psicanálise nos coloca diante desse impasse: de dar conta do real das relações, considerando que sempre precisaremos nos haver de nossa própria falta", afirma, ajudando o paciente a aceitar que "nunca haverá alguém que nos complete".

Já a psicanalista Edilene Carneiro utiliza uma combinação de estratégias:

  • Terapia cognitivo-comportamental (TCC): Trabalhando distorções cognitivas (comparações, catastrofização) e interrompendo ruminações. A prevenção de resposta (tolerar a incerteza sem checar) é fundamental para casos compulsivos;
  • Metacognição e mindfulness: ensinando a pessoa a apenas observar os pensamentos intrusivos sem se engajar neles, reduzindo o poder das ruminações;
  • Terapia de casal: quando o caso permite, visa melhorar a comunicação e restabelecer a confiança, combinando limites e acordos de transparência saudável;
  • Foco na autoestima: reforçando a autonomia e o senso de merecimento do indivíduo, desvinculando seu valor da história do parceiro.

Carneiro finaliza com uma observação importante para o paciente: "Não desqualifico a emoção," reconhecendo que o ciúme pode começar por uma insegurança legítima. Contudo, "quando passa a controlar a vida do paciente ou a relação, é hora de intervir", focando em interromper os comportamentos de busca e controle para reconstruir a confiança.

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postado em 14/12/2025 06:00 / atualizado em 14/12/2025 06:00
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