RIO GRANDE DO SUL

Professor relembra cheia de 1941 em Porto Alegre: "Falhou tudo"

A enchente, até então histórica, foi superada neste mês, quando o Guaíba ultrapassou os 5,30 metros e inundou Porto Alegre. Prefeitura diz que não faltaram investimentos

Vista aérea de Porto Alegre -  (crédito: Mauricio Tonetto/Governo do Rio Grande do Sul)
Vista aérea de Porto Alegre - (crédito: Mauricio Tonetto/Governo do Rio Grande do Sul)

Em 1941, o rio Guaíba atingiu a cota de 4,76 metros. Essa foi a maior cheia registrada em Porto Alegre até então. Na época, a capital gaúcha tinha 272 mil habitantes e a cheia atingiu diretamente as moradias de 70 mil pessoas, além de inundar um terço dos estabelecimentos comerciais e indústrias. Esta situação perdurou por 40 dias. A enchente, até então histórica, foi superada neste mês, quando o Guaíba ultrapassou os 5,30 metros e inundou a cidade.

Em entrevista ao Correio, o professor de hidrologia da engenharia civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Luiz Lopes da Silveira pontuou que o estado não adotou nenhuma medida de contenção de cheias até 1967, quando o Guaíba voltou a subir.

"Na cheia de 1967, o nível atingido foi de 3,13 metros, apenas 13 cm acima do cais, o suficiente para molhar os calçados das pessoas, mas reavivou a memória de 1941 e houve um clamor por medidas. Assim o governo federal, que à época tinha um órgão dedicado à infraestrutura hidráulica do país, o DNOS (Departamento de Obras de Saneamento), elaborou um projeto de contenção de cheias abrangendo Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo", conta André.

"O projeto foi apresentado em 1968 e as obras terminaram em 1974. Neste amplo projeto Porto Alegre foi protegida por diques externos (contra cheias do Guaíba a oeste e do Gravataí ao norte) e diques internos margeando os principais córregos. A cota de proteção foi fixada em 6m. A maioria destes diques que somam 68 km é de terra e muitos são leitos de rodovias e vias que circundam Porto Alegre. Um trecho no centro da cidade, de 2,7m, foi feito, por falta de espaço para um dique de terra, na forma de um muro de concreto armado no qual há várias comportas de contenção metálicas sobre trilhos que permitiam o acesso ao cais do porto. Esta parte em concreto é conhecida como 'Muro da Mauá'", emenda o professor.

Segundo André, houve descaso com a manutenção dessas estruturas. "Se não houvesse descaso com manutenção e reformas necessárias, hoje Porto Alegre estaria seca e com o aeroporto funcionando. Falhou tudo, comportas não tinham vedação adequada, diques de terra tinham partes deterioradas e as estações de bombeamento pararam de funcionar pela inundação interna indevida", afirma o especialista.

Veja imagens da cheia do Guaíba em 1941:

 

  • Cheia no Guaíba em 1941
    Cheia no Guaíba em 1941 Divulgação/Cores da Memória Porto Alegre
  • Cheia no Guaíba em 1941
    Cheia no Guaíba em 1941 Divulgação/Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
  • Cheia no Guaíba em 1941
    Cheia no Guaíba em 1941 Divulgação/Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
  • Cheia no lago Guaíba em 1941
    Cheia no lago Guaíba em 1941 Divulgação/Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
  • Cheia no Guaíba em 1941
    Cheia no Guaíba em 1941 Divulgação/Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo

Veja imagens da enchente em Porto Alegre em 2024:

 

  • Vista de uma rua inundada no centro histórico da cidade de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em 14 de maio de 2024
    Vista de uma rua inundada no centro histórico da cidade de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em 14 de maio de 2024 ANSELMO CUNHA / AFP
  • Vista da estátua de José e Anita Garibladi na inundada Praça Garibaldi, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, tirada em 14 de maio de 2024
    Vista da estátua de José e Anita Garibladi na inundada Praça Garibaldi, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, tirada em 14 de maio de 2024 ANSELMO CUNHA / AFP
  • Vista de uma rua inundada no bairro Cidade Baixa de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, tirada em 14 de maio de 2024
    Vista de uma rua inundada no bairro Cidade Baixa de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, tirada em 14 de maio de 2024 ANSELMO CUNHA / AFP
  • Vista de uma rua inundada no bairro Cidade Baixa de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, tirada em 14 de maio de 2024
    Vista de uma rua inundada no bairro Cidade Baixa de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, tirada em 14 de maio de 2024 ANSELMO CUNHA / AFP
  • Homens transportam pacotes em um barco por uma rua inundada no centro histórico de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, em 14 de maio de 2024
    Homens transportam pacotes em um barco por uma rua inundada no centro histórico de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, em 14 de maio de 2024 ANSELMO CUNHA / AFP

Como evitar?

Para o professor André, as medidas para evitar e conter enchentes futuras devem ter quatro focos: engenharia, ordenamento territorial, sistema contra cheias e previsão hidrológica e meteorológica de cheias e deslizamentos. O especialista argumenta que falta um órgão federal que pense o problema e auxilie em projetos. "Isto ajuda na prevenção e não deve ser colocada como atribuição da Defesa Civil que atua na emergência. É preciso uma auditoria técnica frequente das infraestruturas,sobretudo daquelas contra cheias", frisa.

"Métodos de projeto e construtivos têm que ser revistos para tornar resistentes a chuvas extremas e cheias, as rodovias, as pontes, as estações de bombeamento, plantas de tratamento de água e esgotos, hospitais, pistas de pouso, a drenagem urbana, a rede elétrica, a rede de iluminação, a comunicação, a contenção de encostas; também caberia à engenharia fazer um amplo diagnóstico para reforma e aperfeiçoamento dos sistemas de diques já existentes", acrescenta André.

O professor também cita a importância de um plano de ação emergencial similar ao exigido para barragens e bacias com alto risco de inundações, com a definição de protocolos de resgate e pontos de encontro seguros para as pessoas que estiverem em risco.

"Depois de 1941 e antes de 2023 houve cheias importantes em 1946, 1954, 1956, 2001, 2011, 2015 e 2020. Em 2023 teve mais duas cheias e agora está tendo a maior de todas. A grande diferença é que nestas últimas décadas a população cresceu e se expôs com vulnerabilidade ao risco de inundações e deslizamentos. Nunca houve um ordenamento territorial em nenhum municípioque considerasse esses riscos para as moradias", finaliza André.

Nesta semana, a prefeitura de Porto Alegre anunciou que estuda a construção de uma "cidade provisória" para abrigar 10 mil pessoas, A ideia é receber os afetados pelas enchentes enquanto os bairros são reconstruídos. O projeto teria ajuda do governo federal e contaria com 5 mil construções provisórias, além de uma infraestrutura comercial e escola. A região escolhida para a "nova" Porto Alegre é sede do Complexo Cultural de Porto Seco.

Em resposta ao Correio, a Prefeitura de Porto Alegre pontuou que a cheia que a capital enfrenta neste mês é a maior que o Guaíba já registrou e que somente agora o sistema de contenção de cheias foi submetido a um teste que permite ter um diagnóstico real e concreto.

"Trata-se de uma estrutura construída no final da década de 1960 com tecnologia e conhecimentos da época. Ao longo de quase 60 anos, nunca havia sido testado como em 2024. O Guaíba subiu entre 3,10 metros e 3,47 m em novembro de 2023, mas nunca tinha chegado aos 5,35 m deste mês. Se na década de 1980 fosse testado desta forma, provavelmente apresentaria as mesmas fragilidades", diz a prefeitura.

"O dilema não é a falta de manutenção, mas a concepção dos projetos de construção das casas de bomba e das comportas que vieram á tona na maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. O sistema deve ser pensado de forma ampla, na medida em que quatro rios – Caí, Jacuí, Taquari e Sinos – desaguam no Guaíba e impactam diretamente na elevação do lago em casos de eventos climáticos extremos. É o momento de reavaliar, corrigir e repensar a estrutura em âmbitos municipal, regional e estadual", prosseguiu a gestão.

Veja a nota da Prefeitura na íntegra:

É preciso fazer algumas ponderações antes de se fazer uma análise  definitiva deste tema complexo e histórico. A cheia que enfrentamos agora é a maior que o Guaíba já registrou em sua história, uma catástrofe climática fora de qualquer projeção e que sobrepujou pontes de rodovias, barragens e paralisou o aeroporto por meses. Somente agora o sistema de contenção de cheias foi submetido a um teste que nos permite ter um diagnóstico real e concreto. Trata-se de uma estrutura construída no final da década de 1960 com tecnologia e conhecimentos da época. Ao longo de quase 60 anos, nunca havia sido testado como em 2024. O Guaíba subiu entre 3,10 metros e 3,47 m em novembro de 2023,mas nunca tinha chegado aos 5,35 m deste mês. Se na década de1980 fosse testado desta forma, provavelmente apresentaria as mesmas fragilidades. O dilema não é a falta de manutenção, mas a concepção dos projetos de construção das casas de bomba e das comportas que vieram àtona na maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. O sistema deve ser pensado de forma ampla, na medida em que quatro rios – Caí, Jacuí, Taquari e Sinos – desaguam no Guaíba e impactam diretamente na elevação do lago em casos de eventos climáticos extremos. É o momento de reavaliar, corrigir e repensar a estrutura em âmbitos municipal, regional e estadual.

A Prefeitura e o Dmae investiram R$ 592 milhões em obras que têm relação com prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade. Só no sistema da Estação de Tratamento de Água São João, que atende cerca de 425 mil pessoas, foram aplicados R$ 82,7 milhões em obras de ampliação do complexo. Também foram investidos R$ 35 milhões em dragagens de arroios para evitar inundações – entre eles o desassoreamento do Dilúvio, localizado em uma via com área de grande densidade populacional. Outros R$ 93,4 milhões foram utilizados na ampliação e trocas de redes de água, beneficiando 50 mil pessoas. Somente em 2023, foram investidos R$ 108.858.578,8 em obras de macrodrenagem na Capital. O valor foi aplicado em melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, melhoria no sistema de proteção contra a cheia, manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios.

Principais investimentos contra cheias desde 2021:

  • R$ 250 milhões no Novo Sistema Ponta do Arado. Obra emandamento para evitar falta de água;
  • R$ 93,4 milhões na ampliação e trocas de redes de água;
  • R$ 35 milhões em dragagens de arroios para evitar inundações(50 mil beneficiados);
  • R$ 9,8 milhões para ampliar reservatórios Vila dos Sargentos e Cristiano Kraemer (89 mil beneficiados);
  • R$ 82,7 milhões na ampliação do Sistema São João (124 mil beneficiados);
  • R$ 11 milhões em contratos de microdrenagem de rede pluvial;
  • 20 servidores para cargos administrativos no DMAE;
  • 140 servidores temporários para cargos técnicos no DMAE;
  • R$ 108 milhões em 26 obras no Arroio Areia
  • R$ 2,1 milhões na contratação de seis geradores para ETA Belém Novo (2024);
  • 30 novos agentes Na Defesa Civil (out/23); órgão foi reestruturado em sistema municipal contra desastres;
  • 142 áreas de risco mapeadas em atualização que não era feita desde 2013.

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postado em 16/05/2024 14:40 / atualizado em 29/05/2024 08:21
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