Sociedade

Dependentes de crack relatam histórias de dor e perda por conta da droga

O Correio conversou com dependentes de crack que vivem nas ruas do DF. Eles relatam dificuldade de conseguir internação em clínicas para tratamento. No ano passado, os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas fizeram mais de 80 mil atendimentos

Arthur de Souza
postado em 15/02/2022 06:00
Nas ruas desde que chegou em Brasília, em 2009, Antônio está em um abrigo para se livrar do crack -  (crédito: Fotos: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Nas ruas desde que chegou em Brasília, em 2009, Antônio está em um abrigo para se livrar do crack - (crédito: Fotos: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

"Já cheguei em Brasília indo morar na rua e, para sobreviver, entrei para o mundo do crime e das drogas. Comecei a roubar, assaltar para conseguir o crack e acabei sendo preso por isso." Este é o depoimento de Antônio*, 40 anos, que veio da Bahia para o Distrito Federal, em 2009, apenas com a roupa do corpo, após entrar em depressão por conta da morte de um irmão. Não é difícil encontrar alguém que esteja em situação parecida com a de Antônio na capital do país. Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), em dezembro de 2021, cerca de 2,4 mil pessoas viviam em situação de rua, em Brasília. Algumas devido ao abuso de álcool e, principalmente, do crack.

Antônio passa pelo sexto abrigo provisório e conta um pouco da sua história. Ele destaca que, para quem é dependente químico, não é nada fácil mudar de caminho. "Já tentei sair do crack diversas vezes e passei por várias casas de recuperação", diz. Antônio esteve preso, mas prefere não entrar em detalhes sobre esse período e afirma não cometer delitos há um ano e oito meses. "Eu não desisto de lutar pelo meu objetivo, que é parar de usar o crack, sair dessa vida. Estou tentando de qualquer jeito", reforça.

Ronaldo conta que tem cursos profissionalizantes, mas não consegue emprego devido à dependência do crack
Ronaldo conta que tem cursos profissionalizantes, mas não consegue emprego devido à dependência do crack (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

A família de Antônio chegou a procurá-lo no DF, no entanto, ele não quis voltar para casa e preferiu ficar na capital. Atualmente, ele mantém contato apenas com um dos quatro filhos. Emocionado, o homem lembra o único pedido feito pelo filho. "Apesar de não serem conversas diárias, a gente consegue ter uma boa relação. A única coisa que ele me pede é para que eu volte. Todo filho quer a presença do pai, seja com um abraço, uma presença em algo na escola, uma brincadeira de família", pondera. E faz um alerta. "Eu desejo que ninguém conheça nenhum tipo de droga, pois, depois que ela entra, a luta para sair é muito grande. Ela traz muita destruição, tanto para quem utiliza quanto para quem está à sua volta. O nome droga não é à toa, ela não presta", finaliza.

Vergonha

Situação parecida, vive Ronaldo*, 36. Natural de Pernambuco, ele veio para Brasília há 10 anos. "Quando eu passei a usar o crack, tive que ficar um tempo nas ruas, pois é difícil encontrar vagas em uma casa de recuperação. Até porque, além de mim, existem várias outras pessoas que passam pelas mesmas dificuldades em relação às drogas", avalia. Ele diz não ter intenção de retornar à terra natal. "Eu nem penso em voltar, muito pela vergonha. Imagina, você vir para Brasília, passar 10 anos e voltar pior do que saiu. Sinto que eles ficariam muito decepcionados. Até seus próprios amigos, você encontra um com um carro, outro com seu emprego e família, bem estruturado, isso é frustrante", desabafa.

Ronaldo afirma que tem cursos de sushiman, barbeiro e eletricista, mas que o crack destruiu oportunidades de se recolocar no mercado de trabalho. "Eu sou um dependente químico, mas também sou um ser humano. Sonho, desejo, tenho vontade de superar isso tudo e crescer na vida novamente. Algumas pessoas que moram embaixo de uma marquise, podem ter mais caráter do que aquelas que têm um teto para morar", ressalta.

Acesso fácil

Professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), Raphael Boechat explica que o crack é uma droga que possui um princípio ativo muito parecido com a cocaína, só que mais potente e perigosa. Como a droga é fumada, a fumaça é absorvida pelo pulmão e, a partir daí, cai na corrente sanguínea, causando, rapidamente, o efeito entorpecente. "A droga pode causar prejuízo para o corpo durante esse trajeto e, no cérebro, vai ocasionar uma série de alterações, especialmente, de neurotransmissores", detalha. "Nesse caso, estamos falando tanto da dopamina quanto da serotonina, que pode levar a essas sensações de euforia e de alteração de consciência", enumera o médico.

Boechat frisa que o crack é uma droga devastadora que cria dependência. Uma pessoa intoxicada pode ter efeitos graves de parada cardiorrespiratória, além de criar tolerância à substância. "Nesse caso, a pessoa precisa de cada vez mais droga para ter o mesmo efeito que tinha antes. Por exemplo, a onda criada com uma dose, agora, precisa de duas doses", exemplifica o professor. "Com isso, o organismo sente mais, porque o cérebro precisa de mais droga para ter o mesmo efeito. Porém, o coração, o pulmão, vão pegar o dobro da droga, e vai ser mais difícil para eles trabalharem, criando mais riscos para o corpo", acrescenta.

O médico ressalta que um dos elementos que tornam o crack ser um perigo para a sociedade é ser uma droga muito acessível. "Uma pedra rende. Então, a pessoa compra bem mais barato que a cocaína, e isso facilita o uso, especialmente para população que está em situação de rua", pondera. "Pessoas que não têm dinheiro às vezes nem para comer, conseguem comprar o crack que, de certa forma, inibe o apetite e tira a fome. Essa questão também acaba incentivando o uso", argumenta.

Saúde Pública

Os dependentes químicos que buscam ajuda podem conseguir atendimento gratuito. A Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) atua por meio dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), com serviços destinados a proporcionar o atendimento e assistência a pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas, em diversas modalidades. "Acolhimento, atendimento individual, atendimentos grupais com diversos enfoques e objetivos, visitas domiciliares, acolhimento integral, entre outras propostas conforme a necessidade do território", informa a pasta.

O acompanhamento dos usuários pelos Caps AD começa pelo acolhimento de um profissional de saúde, em que são considerados o histórico, o padrão de uso de substâncias psicoativa e o contexto sócio-familiar e de vida do sujeito para formulação de estratégias de cuidado do projeto terapêutico, adequados à necessidade de cada usuário. O acolhimento é realizado de forma universal e diária, sem a necessidade de encaminhamento de outros profissionais ou serviços.

Em 2020, a Saúde acolheu 2.014 dependentes para tratamento
Em 2020, a Saúde acolheu 2.014 dependentes para tratamento (foto: Minervino Junior/CB/D.A Press)

Atualmente, a secretaria possui sete unidades destinadas ao atendimento de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no DF. "Todos os serviços caracterizados com o funcionamento 24h, dispõem de leitos para desintoxicação e atendimento de quadros agudos que precisem de acompanhamento breve e protetivo, diuturnamente", afirma a Saúde.

De acordo com a pasta, em 2021, foram realizados 80.804 atendimentos nos sete Caps AD, sendo que 2.014 pessoas foram acolhidas. "Não há distinção quanto à substância utilizada, uma vez que os Caps atuam em um perspectiva de melhora de qualidade de vida, reinserção social, autonomia e promoção de saúde, tendo o indivíduo, sua rede social, seu sofrimento/adoecimento como focos do cuidado", ressalta a secretaria.

*Nomes fictícios para preservar as identidades dos entrevistados

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Combate ao tráfico

Em nota oficial, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) informa que trabalha constantemente contra todo tipo de modalidade criminosa, incluindo o tráfico de drogas, realizando diversas abordagens por meio dos prefixos de área e tropas especializadas. Segundo a corporação, em 2021, foram apreendidas mais de duas toneladas de drogas, sendo mais de 60 quilos de crack.

Trama perversa

"Como professora universitária que executou muitos projetos de formação profissional na área de drogas, de dependências químicas e para a implementação da política de socioeducação — onde se encontram os jovens que se inserem na criminalidade pelo envolvimento com drogas —, sempre me impressionou a qualidade dos profissionais da rede pública do DF, bem como o desejo de aperfeiçoar seus conhecimentos nessa temática que ainda está muito pouco reconhecida na formação profissional — até na formação universitária.

Então, deixo como meu primeiro destaque: seja mantida a oportunidade para qualificação de qualidade para todos os profissionais que se dedicam ao cuidado, à assistência e à prevenção do uso de drogas nos diferentes campos de atuação. Essa formação inclui, no meu entender, oportunidades e trocas constantes entre os profissionais, mediadas pelo que chamamos de intervisão — um espaço de compartilhar novos saberes para construirmos novos fazeres.

Entramos, aqui, no campo de outras políticas essenciais tais como políticas de segurança e de promoção de direitos humanos, sem falar em políticas de redução da criminalidade que estão sendo responsáveis pelo maior contingente de encarceramentos na rede prisional brasileira. E, aqui, a triste realidade que não quer e não podemos deixar calar: o poder paralelo do tráfico de drogas que domina as prisões. E a mancha maior que nos dilacera: a mortalidade juvenil de nossa juventude usada como mão de obra fácil e barata nesse negócio que cada vez mais enriquece, sempre às custas dos mesmos que todos sabemos quem são, mas não conseguimos pautar nem nas campanhas eleitorais e, tampouco, nas políticas educacionais. A prevenção deve ser feita fortalecendo o território educativo em sua dimensão protetiva e de inserção social dos jovens.

Aprofundar o conhecimento dessa delicada interface entre drogas e violência é o grande desafio, no meu entender, para aprofundamento em todas as áreas do conhecimento. Muita gente acha que a política sobre drogas está reduzida à descriminalização, quando, na verdade, se trata de avançarmos nas políticas do controle desse comércio que traz riscos aos usuários tanto sendo drogas lícitas quanto ilícitas.

Cada um de nós tem sua parte nessa história, e não devemos esperar para atuar de forma competente e engajada no cuidado daqueles que adoecem pelo uso abusivo de drogas e daqueles que se inserem no comércio de varejo e colocam suas vidas em risco, em uma trama complexa e perversa entre ganhar e perder a vida."

Maria Fátima Olivier Sudbrack, professora titular do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB)

 

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